CONTOS E MINICONTOS – O cearense por Alexsander Dionísio

CONTOS E MINICONTOS – O cearense por Alexsander Dionísio

Prólogo

 “O homem é muito mais homem pelas coisas que silencia do quê pelas que fala”, ruge o nosso talentoso e absurdo Albert Camus.
Nesta obra, qualquer que queira compreender o bullying sob uma perspectiva diferente, deverá se atentar à consciência de que vivemos em um tempo de coitados, de pessoas do bem, seres que, perpassando a superioridade luxuosa, chegam até o cume mais alto, o pico da mais distante montanha, onde, bastando apenas querer, a bondade total lhes torna conclusivamente presente. É, no fim, uma montanha consagrada pela mais descarada face de santa puta, que só nos poderia provocar, nós que somos um pouco menos infantis, uma grande e deliciosa risada, seguida de algum cuidado que nos livraria do machado daqueles que não costumam errar.
 Estejamos atentos, também, à consciência de que ninguém sendo bonzinho e, caso o sendo, caindo em inadequação, tornando-se a sofrida bolinha das numerosas raquetes da vida, o nosso herói trágico, o nosso terceiro comediante, ao mesmo tempo em que se comove com o nosso fraco cabeça de E.T., assim como o faz com os dois primeiros troçadores, se nega a suspender seu senso de humor e, na hora de aconselhá-lo, toma um partido diferente, defendendo a verdade e a autonomia de pensamento como excelentes ferramentas terapêuticas para o sofrimento!
 Enfim, o afrouxamento do juízo, partindo do pressuposto de que o ser humano sempre esconde algo a mais, isto é, o silêncio daquele que sabe que nunca conheceu alguém o bastante para julgá-lo, nos levando ao perdão e nos desiludindo em relação a nós e aos demais, sempre poderá nos ajudar.

 

Um primeiro lado

 De longe o cabeça de E.T., como falam aqueles habituados à arte de troçar, num canto vazio e desanimado, cheio de tédio, essa criatura anormal sente-se pouco a vontade e apresenta em si grande dificuldade em falar. É neste momento que, aproximando-se dele, outros dois humanos, portadores do mesmo drama material, seres que também choram e vão morrer, novamente voltam a exercer, com o velho e impiedoso humor, o perturbador talento de mangar.
 Ao segundo troçador, apontando pro esquisito, o primeiro dirige as seguintes palavras:
 – Olha lá o cabeça de E.T.!
 O que se segue é, então, uma risadinha em coro, seguida duma provocação sem resposta, dirigida ao estranho pelo primeiro provocador:
 – Foi o quê, meu amor?
 A respeito do estranho, o segundo troçador dirige ao primeiro a seguinte piada
 – Com essa cabeça, deduzo que a mocreia, a mãe dele, o tenha parido a deriva em alguma cratera lunar. E digo mais, para ela, deve ter sido como soltar pipa, isso até o cordão ser cortado e a massa de sua grande cabeça arremessá-lo ao solo terrestre em alta velocidade, terminando de deformar o seu corpo e, por fim, nos presenteando com essa enorme desgraça! – E mais risadas!
 O primeiro troçador se aproxima e insiste:
 – Bom dia, cabeça de airbag, e hoje, quantas vidas pôde salvar?
 O esquisito, tomado por constrangimento e com uma voz levemente trêmula, olha para os troçadores e pergunta.
 – Por que me tratam assim? Por acaso o mereço?
 O segundo troçador exclama num súbito de humor:
 – Antes, o gato havia comido sua língua. Agora, cagou-a em sua boca, o fazendo falar merda! – Mais um coro de risadinhas más.

 

Um segundo lado

 Vendo passar dois pares de pernas brancas e nuas, caindo com isso em distração, o primeiro troçador aperta no ombro do segundo e, em seguida, lança uma piscadela, indicando outra caçada satisfatória.
 Por sua vez, o cearense, palpitando, prossegue pensando de modo a murmurar:
 – Não vou sujar a limpeza predominante das minhas mãos com as faces impuras desses porcos malvados. Esperar! Hei de aguardar o dia em que a justiça, despontando soberba na linha do horizonte, a cavalo e com uma espada na mão, se disporá à sangrenta e necessária arte de cortar o pescoço daquele que se mostra vilão! Sinto… sinto… sinto muito que alguns estejam gozando de tamanha felicidade, seres indignos, enquanto outros homens como eu, logrados de honestidade, agonizam a doída chibata daquele que na glória não poderá permanecer. Vida suja e solitária! Muralha maldita que, por enquanto, nos separa da justa lâmina da retidão, responsável por cortar a cabeça privando a presa do leão!

 

Quem sabe assim?

 O esquisito garoto sem paz, com o sentimento de vazio, angústia e solidão, continua a murmurar, quando brota repentinamente mais um zombador que, embora goste de brincadeiras cortantes, dessa vez, decide interromper quase que totalmente aquele momento de pressão sofrido pelo dominado.
 Do terceiro zombador aos dois:
 – E vocês, grandes estrupícios, não lhes parece fácil destruir essa carniça? Não se sentem covardes?
 O E.T. neste ponto não sabe se recebe ajuda ou se, pelo contrário, o terceiro zombador também o quer destruir. Isso muda quando o último a aparecer, o nosso herói, se aproxima dele e lhe dirige verdades profundas o pretendendo encorajar:
 – Olha, meu caro cabeça lunar, quase tudo e todos são indiferentes a você, mas não só a você. É muito certo que após sua morte, por mais que tenha sucesso, o esquecimento finalmente venha a lhe encontrar. Não há, então, um futuro onde tudo se resolve, onde a bala do revólver não nos cortará. Atenta-te, pois o peso que carregas sem saber o porquê é o mesmo peso do drama que também carregam, só que com um pouco mais de coragem e humor, esses dois imprestáveis tão humanos quanto você. Enfim, ou tu te acomodas e te familiarizas à constante impiedade desta selva desumana ou acabarás pendurado numa corda, tornando-se finalmente um número estatístico qualquer.
 Algo parece mudar, uma ponte passa a se erguer entre o barroso chão da terra e os pés distantes do Alien, floresce também algum sentimento diferente, como se o que lhe faltasse fosse uma dose do veneno que lhe faz sangrar, uma dose de consciência da vida que nos costuma provocar incansáveis lágrimas de horror. Diante da conversão do seu pesar no motor de partida da busca pelo conhecimento (o que qualquer filosofia aceitável deveria promover), o nosso cabeçudo, tornando-se interessado, enfim, se põe a perguntar: como ter humor? Como me familiarizar? Como, afinal, eu posso me acomodar a esta realidade impiedosa em constante movimento de destruição?
 O terceiro zombador conclui friamente:
 – Esse é um problema seu, portanto reflita com a sua própria cabeça para quem sabe um dia alguma resposta encontrar.
 Por fim, os outros dois zombadores, acompanhados pelo conselheiro trágico, voltam à sua vida bagunceira, enquanto, encucado, o tímido rapaz prossegue, mas agora com o hábito de pensar.

Por ALEXSANDER DIONÍSIO

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