Ele gostaria que alguém soubesse a verdade. Muitas vezes desejava que todos descobrissem que aquele homem aparentemente simpático e gentil era na verdade um pecador. Sim, um pecador, e embora ninguém desconfiasse, ele sabia que o Senhor conhecia todos os seus atos e que o Estranho não escaparia impune.
O Estranho. Era assim que Dante o chamava, ainda que algumas vezes achasse que “O Enigmático” fosse um termo melhor para tamanha mutabilidade. Conhecia-o (na verdade, já não achava mais a palavra “conhecer” apropriada) há muito tempo, tanto que era impossível precisar exatamente quanto. A princípio, acreditava fielmente que sabia tudo o que se passava em sua alma, mas com o passar dos anos foi percebendo que seu coração era bem mais frio e escuro do que poderia sequer imaginar.
Quando o céu do Estranho começara a desmoronar? Essa questão perturbava Dante. Ele sempre fora o primeiro em tudo, o preferido, o mais admirado. E isso o fazia pensar que a vida aparentemente perfeita do Estranho jamais ruíra, pois ele era capaz de tudo para impedir isso. Na verdade, pensou melhor Dante, ele não foi sempre assim, ele se tornou extremamente competitivo porque todos ao seu redor exigiam que ele agisse desse modo. Os pais, professores, colegas de aula e mais tarde os colegas de trabalho. Todos o obrigavam a ser simplesmente o melhor. E, no fundo, apenas o que ele queria era não ser julgado pela genialidade que vez ou outra era capaz. Mas, tolamente, com a visão ofuscada pelo brilho do triunfo, cada vez mais ele era seduzido à glória de ser o centro das atenções enquanto a nuvem de anônimos ao seu redor o aplaudia.
Dante se perguntava quantas lágrimas mais deveriam cair para que ele parasse. A carreira meteórica do Estranho havia deixado um rastro de dor e destruição. Amizades, casamentos, famílias… nada escapava ao seu egoístico objetivo. E lá estava Dante, assistindo a tudo, mas incapaz de fazer algo, como se estivesse sedado por algum poderoso tranquilizante. Talvez esperança. Talvez inércia.
Brilhante na escola, brilhante na faculdade de publicidade. Ele tinha uma reputação, e precisava mantê-la. No início não tanto por ele, mas pelos outros, pela expressão decepcionada que via em suas faces quando planejava algo que eles não considerassem excelente. Quando começou a trabalhar, após algumas boas ideias que deram muito certo, ninguém mais permitia que o Estranho não fosse genial. E, a essa altura, nem mesmo ele.
Acreditava que a criatividade é um estado de espírito, não uma característica permanente. Ninguém mais parecia dar crédito a essa ideia, e ele logo a abandonou. Sua rápida ascensão fazia com que tudo mais ficasse em segundo plano, inclusive valores morais. E foi aí que começou. Uma pequena mentira aqui, uma intriga ali, uma grande mentira acolá. Sua mente passou a viver em um estado em que tudo precisava ser criado, até os eventos mais prosaicos. Suas ideias já não eram boas o bastante, mas ele ainda precisava de grandes projetos, afinal, era o que eles queriam. E se queriam que ele fosse uma fonte inesgotável de originalidade, de qualquer forma ele seria.
Logo as pequenas inverdades se tornaram maiores, e cada vez mais envolviam outras pessoas. Ele precisou subornar, chantagear e ameaçar. Sua magnífica carreira profissional não poderia ser interrompida. Havia muita gente poderosa interessada nele, como certa vez dissera seu chefe.
Enfim chegou sua grande chance: um ambicioso projeto publicitário que deveria ser, no mínimo, revolucionário. Então ele teria sua própria agência, não precisaria mais curvar seu pescoço ante ninguém. Porém, mais do que nunca, o poço estava seco. E um colega seu, confiante na aparente amizade sincera do Estranho, mostrou-lhe sua ideia. E o Estranho ficou abismado. Jamais poderia pensar em algo tão fantástico. Após algumas doses de bebida, o amigo confidenciou-lhe que ninguém mais até o momento sabia de sua ideia. Ele queria surpreender a todos. Naquele instante, o Estranho perdeu totalmente o controle, e todos os limites foram ultrapassados. Não havia mais distinção entre o real e o imaginário. Tudo era um grande jogo, no qual o melhor jogador levaria o prêmio. Apático, em um ato quase casual, o Estranho matou seu colega. Livrou-se do corpo em uma lagoa e tomou a ideia da vítima para si. Tudo perfeito. Como todos já sabiam, o Estranho tivera uma inspiração inimitável.
Mas há muitas variáveis imprevisíveis em qualquer plano. O cadáver foi descoberto. Nada que um pouco de dissimulação não pudesse resolver. Alguns boatos, um depoimento falso, outro assassinato e pronto, cria-se o suspeito perfeito. A opinião pública ficou estarrecida: o próprio irmão do assassinado, o criminoso. “E ainda matou a própria esposa, que estava tendo um caso com o irmão!”, diziam as pessoas, chocadas. “Sempre achei ele mal encarado”, comentavam alguns, aqueles tipos que, em retrospecto, sempre têm certeza de tudo. E não importava que o condenado se declarasse inocente em alto e bom som. Os “fatos” e o depoimento de alguém tão respeitável quanto o Estranho havia selado o destino do fantoche desavisado.
Toda a agitação da mídia havia posto em destaque o Estranho, o herói do caso. Sua agência crescia exponencialmente. Mas tudo isso se tornava pouco para preencher o vazio que aumentava nele que, como um buraco negro, sugava a luz de todos ao seu redor.
Insone durante uma madrugada fria, olhando o Estranho diretamente nos olhos, Dante concluíra que eram dois olhos desconhecidos, indiferentes e distantes. Para onde fora aquela criança adorável que um dia conhecera? Perdera-se no labirinto da loucura, era a triste conclusão. Ele procurava sinais de amor, afeto, humanidade… mas estes já não existiam. Sua alma estava em ruínas, sua fé, abalada, e o vazio o consumia cada vez mais. Dante se negava a acreditar que havia se transformado naquele homem estranho e monstruoso que o observava através do espelho.
Por ÉDER RÖSNER