CONTOS E MINICONTOS – O Grande Expresso por José Manuel

CONTOS E MINICONTOS – O Grande Expresso por José Manuel

 Pelos 50 anos do lançamento do álbum Expresso 2222, de Gilberto Gil.

 Faz tempo, mas lembro bem. Eu estava lá. Na estação. Se não me engano, o nome era Estação Pindorama. Era jovem e me sentava num banco da estação, de onde via tudo que acontecia. Adorava ver os trens chegando e partindo. Dava até para ouvir alguma coisa das conversas. Muita coisa eu guardei, muita coisa esqueci, muita coisa lembro vagamente.

 Era 1972, tinha quinze anos. O que registrei perfeitamente foi o tempo que fazia então. Tudo nublado, nuvens de chumbo, clima pesado, as pessoas evitavam conversar, não chegavam muito perto umas das outras. Falavam de lado e olhavam pro chão. Não entendia muito bem o porquê; acho que era devido ao tempo escuro da época. Estavam todos alvoroçados esperando o novo Expresso… Depois eu lembro o número. Parece que estava demorando; fazia três anos que tinha saído do Brasil, passado por Londres e agora estava de volta. Daí o alvoroço.

 Alguns comboios que passavam pela estação ficaram famosos. Traziam gente conhecida e mercadoria boa. Uns dez anos antes teve um que marcou época: o Expresso Tropical-1A, acho que era esse o nome. Tinha um design moderno, cores vibrantes, até o ruído das rodas era diferente. A chaminé soltava fumaça verde, azul e amarela. O apito era musical, mas era uma música misturada, como se fosse uma miscelânea de ritmos. Trouxe mercadoria que demorou décadas para ser consumida, tamanha a qualidade, mercadoria essa que foi copiada, imitada e aprimorada por outros comerciantes. É claro que, como sempre, muita gente torceu o nariz. O novo sempre assusta. Quiseram até proibir o trem de circular, mas não conseguiram: era importante demais. Num dos vagões lia-se “pão e circo” numa língua estranha, mas só entendi muito depois. A aparência do trem era diversificada, intensa, multicolorida e inovadora, uma verdadeira geleia geral. Alguns trechos do som do apito ainda estão na memória, algo como iê-iê-boi e bat-macumba-obá. Para mim, era tudo divino e maravilhoso; afinal, tratava-se de um país tropical.

 Descobri posteriormente que outro trem expresso passara pela estação, antes do Tropical-1A. Deixaria marcas horríveis no país inteiro durante décadas. Era o Expresso FFAA-BR-64. Quem me contou a história não pôde entrar em detalhes na época; talvez um dia, quando parasse de circular. Finalmente, parou: estragou, envelheceu, sem peças de reposição, pois era muito antigo, ultrapassado. Era pesadão, consumia demais, lento e não admitia modernizações. A empresa mantenedora manipulava os números de seu desempenho, e somente muito depois é que se descobriram as mentiras, a maquiagem dos números e muitas falcatruas. Mas durou bastante, e, conduzido por gente inepta, causou muitos estragos por onde passou, incluindo milhares de mortes.

 Diversos trens expressos passaram por aquela estação ao longo dos anos. Teve um que chegou uns vinte anos antes de eu nascer, cheio de bossa, coisa nova. Era o Expresso BN. Diziam que seu deslizar pelos trilhos era mais que um poema, era um sambalanço gingado, um samba-jazz que era total novidade para quem andava de trem. Fez muito sucesso, e seu projeto foi copiado até fora do país.

 Mais ou menos na mesma época do Expresso Tropical-1A, houve outro famoso: o Expresso JG. Possuía um desenho moderno; para alguns, moderno até demais. Trazia muito do que acontecia lá fora, tinha um apelo bem jovial; era como se a velha guarda estivesse dando lugar a uma jovem guarda, crítica e iconoclasta. Era um trem colorido, arrojado, sexy. Os vagões balançavam num ritmo alucinante, como se houvesse uma brasa nos trilhos, mora? Sua passagem era sempre uma festa de arromba.

 E então chegou o Expresso 2-2-2-2 (felizmente, lembrei o número). A rigor, já circulara antes, fazendo a rota entre duas cidades da Bahia. Agora vinha repaginado, reinventado, reformulado, retudizado. Foi muito aguardado, mas ninguém previa a importância que teria no futuro. Tinha até uma banda de pífanos no primeiro vagão, coisa inédita até então. Aquilo prometia. Comprei uma daquelas pipocas modernas e admirei os vagões entrando bem devagar na estação.

 Quando o segundo vagão adentrou, disseram que poderíamos visitar o trem quando os passageiros descessem. Ao subir, percebi que me sentia um pouco longe dali, como se estivesse em Londres, dentro de um baú de prata à luz do luar. Não sei se por sorte ou castigo, comecei a me sentir diferente, como se estivesse em outro lugar fora daquele carro; sensação ainda inexplicável. Continuei até o próximo vagão. Ouvi nitidamente um canto triste, quase um gemido de ema. Foi um sinal bem triste, e mal sabia que a ema retornaria décadas depois, irritada com alguém que lhe oferecia remédios inócuos para um vírus que assolava o país; foi algo bem xa-xa-xato. É aquela história: todo mundo sabe que a ema quando canta vem trazendo no meio do seu canto um bocado de azar; não trouxe naquele dia, mas trouxe depois.

 Assim que entrei no próximo vagão, escorreguei numa casca de banana e quase engoli meu chiclete. Quem me visse pensaria que eu dançava, numa mistura de samba com rumba com boogie-woogie com bebop, um verdadeiro samba-rock, mermão! Era como se estivesse segurando uma frigideira, pá e pã, pé pra lá, pé pra cá, da-ba-du-di-bão, uma grande confusão. Caminhei para o próximo vagão.

 Olhei em volta, e a decoração me deixou mais calmo, como se estivesse num porto da Barra, eu que vivo sempre tão elétrico, esperando o golpe do martelo. Que não veio, felizmente. Meu coração divagou por um instante, como se esperasse um beijo arrependido. Que também não veio, infelizmente. Voltei a mim já em outro vaga-vagão do trem-me-me-mém, num feliz golpe do destino, ouvindo minha mãe mandando eu sair do sereno, que ele podia me fazer mal.

 Lá dentro, senti que as coisas não mais seriam as mesmas. Era como se fosse um dedilhado diferente do destino, algo virtuosístico e tradicional ao mesmo tempo, sob um céu de ritmos contagiantes; a atmosfera daquele carro me deixou confiante. Por um momento, as nuvens de chumbo, o ar pesado, tudo se dissolveu em alegria, em esperança. Foi quando me lembrei de que aquele Expresso 2-2-2-2 tinha saído lá de Bonsucesso e tinha um destino longínquo, pra depois do ano 2000. Será que eu ainda estaria vivo? Veria os trilhos que não tinham fim? Chegaria à estação final do percurso-vida na terra-mãe concebida? Era como se eu sentisse o vento, o fogo, a água e o sal, e entrasse numa estrada do tempo que não sabia onde ia dar, mas, por alguma razão, sabia que era um lugar bom; como se vivesse eternamente numa nuvem brilhante. Queria sair dali e contar as novidades.

 Naquela época, eu e meus amigos acampávamos bastante, sonhávamos dentro de sleeping bags, tocávamos violão, cantávamos, discutíamos as tramas do doutor Silvana e as transas do doutor Fantástico, não queríamos acreditar que o sonho tinha acabado; insistíamos em aguardar dias melhores. A gente queria ser poeta, músico – queria ser alguém. Acho que éramos impedidos pelas nuvens de chumbo, que não nos deixavam viver livremente; era como se nossa pílula de vida se dissolvesse na atmosfera pesada daqueles tempos. Sobrevivemos, mas a duras penas, com sequelas, desconfianças, traumas e decepções.

 Desci do trem eufórico e encontrei um conhecido. Lembro de ter dito a ele uma frase, que ele não entendeu de cara: “se oriente, rapaz”. Sentamos no banco da praça e tentei explicar, mas era muita coisa nova; afinal, ele ainda não tinha passado pela experiência por que eu passara no trem. Disse para ele se orientar pela constelação do Cruzeiro do Sul, pela teia da aranha, pela rotação da Terra em torno do Sol; falei para ele subir no trem e entender tudo por ele mesmo, mas avisei: “não se esqueça, cada macaco no seu galho”.

 Tudo que aconteceu depois daquela experiência com o Expresso 2-2-2-2 daria um longo livro de memórias. Passamos por refazendas e refavelas, e só muita kaya para sobreviver neste país nascido de madeira vermelha. O Grande Expresso chegou ao ano 2000, passou por 2001 e dois e pelo tempo afora, mas ainda não subimos ao céu numa nuvem brilhante. Chegamos perto algumas vezes, mas, quando tudo indicava um final feliz, entrou na estação um novo comboio cheio de maldades e retrocessos: o Expresso jmb-18. Ninguém entendeu muito bem como deixaram aquilo entrar aqui, mas entrou. Agora estamos todos tentando construir um novo Grande Expresso, um que nos leve para bem longe desse atoleiro. Se tudo correr bem, adentrará a Estação Pindorama o Expresso 2-0-2-2, com novos faróis e novo apito e novo design de vida. Talvez coubesse aqui um conselho: “se oriente, votante”.

Por JOSÉ MANUEL

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