CONTOS E MINICONTOS – O inútil por Roberto Minadeo

CONTOS E MINICONTOS – O inútil por Roberto Minadeo

 Chegou o dia da tão esperada mudança. Embrulhar, arrumar um monte de coisas. Nesses momentos se nota como uma casa é grande. Quer dizer, eu não morava em uma casa enorme. Longe disso; mas, tratava-se de organizar tudo para ser levado em duas ou três viagens com o caminhão de mudanças. Trabalho infindável.

 Como se não bastasse resolver meu próprio problema, havia a obrigação de entregar a casa limpa. Parece fácil, mas nada mais difícil do que limpar uma área que acabou de perder todos os seus móveis, tapetes e cortinas. A limpeza não é uma qualquer, mas aquela que o senhorio espera.

 E o senhorio não era uma pessoa qualquer! Era aquele dono chato, que chegaria de uma longa viagem pelo Oriente para fiscalizar a sua tão amada casa, visando alugá-la o quanto antes a alguém que com certeza iria pagar mais do que nossa pobre família estava pagando – o que não seria nada difícil, devido à possibilidade de entrar uma clínica ou escola.

 O jardim era pequeno, eu sempre o vira como minúsculo. Com dificuldade conseguia plantar umas rosas, uma parreira e o eterno pé de manjericão – uma tradição de família. Todavia, ao entregar a casa, o senhorio não queria nada disso.

 Todos trabalharam como nunca. Minha filha até trouxe uma amiga e o namorado para ajudar em tudo que se fizesse necessário. Coitados, não tinham nenhuma obrigação, mas estavam ali, tão entretidos como se estivessem fazendo a mudança de suas próprias casas. Meu filho, com doze aninhos, coitado, começou o dia com calos, que foram explodindo e sangrando; ele não se importou, colocou umas talas com esparadrapo e trabalhou até o fim, com a garra de um adulto. Tive que me esforçar para não chorar.

 Aos poucos todos fomos percebendo que meu marido estava com uma vassourinha. Bem, é desnecessário dizer que ao final de todo o processo haveria a necessidade de uma varrição geral. Todavia, não é disso que eu estou falando. O problema é que desde o primeiro momento – em meio à terrível trabalheira de empacotar, arrumar o jardim, entrar no caminhão de mudança – ele apenas ficou de vassoura em riste, qual D. Quixote – com as primeiras horas em total inatividade, pois ao empacotar e limpar o jardim, nada havia a ser varrido. Tal atitude arrancou olhares de estranheza de todos.

 Enquanto o meu filho destroçou a mão, enquanto a minha filha trouxe namorado e amiga para ajudar na mudança, enquanto todos estávamos sujos e suados, ele estava limpo, como um príncipe, pronto para ir ao teatro; ninguém iria notar que a sua casa toda fora mudada.

 Quando eu preparei uma limonada gelada para todos, tive a desagradável surpresa de vê-lo em primeiro lugar na recepção do refrigerante natural, antes de todos os que de fato dele necessitavam. Confesso que não foi nada fácil para mim ter de superar a tentação de quebrar a jarra de vidro em sua cabeça – pois o traste inútil nem tivera a iniciativa de fazer algo para nos aliviar.
Como eu nunca havia me mudado antes, tratava-se de uma situação nova. Então fui falar com ele depois da limonada – uma oportunidade única. Expus a situação, destacando que nossa filha trouxera o namorado e uma amiga, que estavam trabalhando como se fizessem a própria mudança de suas casas. Qual surpresa tive com sua resposta infernal:

 — Você sabe que eu não nasci para essas coisas!

 Se fosse a resposta de um intelectual, de um artista ou até mesmo de alguém que ganhasse muito, eu nem me importaria. Infelizmente não era o caso. O traste inútil era daqueles que trabalham pouco, que já nasceram acomodados, que nunca fizeram esforço. Aliás, logo após os meninos chegarem aos seis ou sete anos de idade, eu mesma já estava ganhando mais do que ele.

 A resposta foi imediata:

 — E você acha que o nosso filho nasceu para isso? Levante-se e vá ver a mãozinha dele, por favor.

 — Como assim?

 — Eu vou ser mais didática: sabe o nosso filho? Vá ver as bolhas da mão dele agora, ou você vai ter de comer essa vassoura!

 O traste se assustou com a ameaça, levantou-se e avaliou as bolhas, estouradas e ensanguentadas. Todavia, continuou com a vassourinha, durante todo o dia! Incrível! Não custava nada carregar umas caixas ou cuidar do jardim! Podia ao menos ter disfarçado, para alegrar o ambiente! Nada disso!

 A mudança foi feita e, com ela se criou um fosso na família. Minha filha – cada vez mais envergonhada do traste – não tinha mais coragem de trazer o namorado para casa, para essa casa à qual o namorado trabalhou como nunca para propiciar a mudança. Eu já não sabia mais como abordar o “vassourinha”, e tive uma enorme alegria quando ele mesmo veio falar, sem jeito, que estava meio distante. Foi ótimo, eu mesma empacotei as suas coisas – do alto da minha experiência em mudanças – e coloquei umas caixas na porta da casa.

 Poucos meses depois, tive a desagradável surpresa de ler a notícia principal do principal jornal da megalópole:

 — Vassourinha é assassinado a facadas em boteco!

 Havia uma fotografia que não dava lugar a dúvidas. Apesar de detestar matérias mórbidas como essa, tive que me vencer meu nojo natural e encarar o texto do início ao fim.

 Com enorme surpresa verifiquei que o traste inútil passara a habitar em um minúsculo quarto de pensão próximo ao trabalho. Todos os conhecidos, tanto da pensão quanto seus colegas de profissão, foram notando uma alteração incrível em seu comportamento. O setor de Recursos Humanos da firma chegou a pensar em esquizofrenia ou em alguma outra psicopatia grave – fazendo a indicação para que procurasse profissionais da área.

 O cidadão se esquivou e jamais procurou tratar-se.

 Os colegas do trabalho e os da pensão o viam cada vem mais maníaco, preso a uma vassoura, jamais abandonada. O desempenho profissional teve um brusco declínio, e foi convocado ao setor de Recursos Humanos, que solicitou a comprovação do início de seu tratamento. Ante as evasivas clássicas de quem não quer se tratar, tendo inclusive comparecido a essa entrevista com a vassoura, naturalmente foi demitido.

 Após algum tempo, as consequências inevitáveis chegaram: sem recursos para pagar a pensão, começou a cometer pequenos furtos. Todavia, até a carreira do crime exige um mínimo de cérebro – o que não era o caso de um elemento inútil preso a uma vassoura.
No dia em que encerrou sua vida, estava no boteco, preso à vassoura, e foi reconhecido por sua primeira vítima, de quem surrupiara meros cinquenta reais. Foi o álibi do crime – pelo qual levou uma facada fatal. O criminoso foi absolvido, nem tendo que pagar fiança.

Por ROBERTO MINADEO

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