Antes de lhes contar como foram meus últimos dias, julgo pertinente realizar uma breve narrativa sobre minha vida, para que deste modo possam compreender melhor o desenrolar dos acontecimentos.
Nasci no sul da Inglaterra, já na oportunidade de meu nascimento, por ordem da genética minha fisionomia seria marcada por algumas peculiaridades, mas a mais marcante refere-se a um de meus olhos, o olho direito não era de um azul vívido como o outro, ao contrário sua íris era de um tom pálido e sua pupila era ligeiramente menor que a do olho esquerdo. Fato este que tornaria minha aparência um tanto quanto peculiar e até repulsiva para alguns.
Na medida em que os meses se passaram, também se tornou perceptível que uma mecha de meus cabelos era grisalha. De início recordo-me de tentar esconder esses pequenos detalhes, mas à medida que eu fora amadurecendo, deixei de fazê-lo.
Meu pai ensinou-me o ofício da ourivesaria, ao qual dediquei-me durante muitos anos, minhas duas grandes paixões foram o fabrico de peças de ouro e a literatura para os quais dedicava boa parte de meus dias.
Nunca casei e tão pouco tive filhos, sendo um homem solitário e de raras amizades, meus pais faleceram ainda durante minha juventude, não tive irmãos. Apesar de viver solitário nunca me senti triste, pois como lhes contei dedicava-me com afinco as duas paixões de minha vida, então posso dizer-lhes que gozei de uma vida boa, ao menos até seus últimos dias dos quais creio não posso dizer o mesmo.
Os anos se passaram e o peso da idade abateu-se sobre mim, vieram as dificuldades de mobilidade, alguns problemas de saúde próprios da velhice e em decorrência disso deixei meu ofício de ourives. E tive que buscar auxílio de um cuidador, um rapaz que me fora em princípio bem recomendado por seus serviços anteriores em uma casa de saúde.
O rapaz mostrava-se sempre gentil e disposto a ajudar-me, no entanto havia algo em seu olhar que ele dissimulava com sorrisos e palavras afáveis, sentia que quando ele mirava seu olhar no meu, não era a mesma estranheza com que já havia me acostumado que via em seu olhar, pois muitos olhavam-me assim por conta das peculiaridades das quais já lhes falei, antes, seu era um olhar raivoso.
Certa noite, tive a impressão de que alguém me observava, porém estava muito escuro e vi somente um leve clarão vindo da porta de meu quarto, julguei tratar-se do cuidador que num ato zeloso passará para verificar se estava tudo bem.
Mas outras noites vieram, e então tive a certeza de que não se tratava de uma atitude zelosa, pois ele vinha esgueirando-se em meio a escuridão tal qual um rato, silenciosamente metia sua cabeça para dentro de meu quarto e assim permanecia durante muito tempo fitando-me, sentia meu sangue gelar e meu coração a palpitar apressadamente; e sim, ali naquele instante ficara evidente de que ele deseja minha morte. De certo almejava meu dinheiro, pois que outra coisa poderia querer de um velho como eu.
Ele estava obstinado a matar-me e quando alguém está obstinado a fazer algo, sua vontade só cessa quando este alcança seu intento e nessa situação não importam os meios nem se estes são justos ou atrozmente nefastos, pois não há dignidade nem limites quando a vontade, o desejo se sobrepõe à razão.
Na derradeira noite, lá estava ele novamente, ratazana vil, a maquinar com toda sua sordidez como daria fim a minha vida. Há meu Deus! que tristeza profunda sentia dentro de mim, pois nada poderia fazer para contê-lo, então certamente ele lograria êxito no ardil que perpetrava, tendo em vista o peso dos anos que recaiam sobre mim não teria como ser diferente.
Mas o terror apossou-se de mim, e com todo meu ser desejei que aquilo não estivesse de fato acontecendo, meu coração parecia que ia pular do meu peito, meu corpo em toda sua extensão tremia, e num ímpeto de desespero ergui meu corpo o máximo que pude e gritei, pois talvez houvesse alguma esperança. Há meu Deus! Ninguém veio em meu socorro, talvez passassem dias até que dessem conta do meu sumiço. Que horror! Foi quando ele furiosamente lançou-se em minha direção, derrubando a cama sobre mim, ouvia minha respiração tornar-se lenta, meus olhos se fecharam, era meu fim.
No dia seguinte, abri meus olhos, eu estava em meu quarto novamente, foi quando de súbito vi meu algoz adentrar, estava pronto a lançar-me sobre ele, quando percebi que o seguindo estavam dois cavalheiros. Recuei, sentei-me na cama e ali fiquei a observar, porém nenhum deles havia notado minha presença. Foi então que um sopro de vento veio em minha direção trazendo consigo um feixe flamejante de luz; recordei-me do que houvera na noite anterior.
O cuidador puxou uma cadeira e sentou-se de frente para os dois homens, mal acabara de sentar-se e logo precipitou-se, começou a andar freneticamente de um lado a outro do cômodo, levava as mãos a cabeça reclamando de um barulho, questionando se os outros dois não estavam ouvindo. Os cavalheiros se entreolharam e riram de suas atitudes, julgando-o louco. Porém a angústia do rapaz só aumentava, e num acesso de fúria o assassino arrastou a cadeira arremessando-a em direção a um canto do aposento e bradou as seguintes palavras:
— Desgraçados! Não precisam dissimular mais! Eu confesso o crime! Removam as tábuas! Aqui! São as batidas deste coração horrendo!
Minha alma estava livre.
Por ANA PAULA