CONTOS E MINICONTOS – Relações ou O que você faria por José Manuel da Silva

CONTOS E MINICONTOS – Relações ou O que você faria por José Manuel da Silva

 ─, mas ele é um robô ─ tentou argumentar o marido.

 ─ Não é robô; é um SAS, um Ser Artificial Senciente. Você está bastante desatualizado. Robô é um termo que não é usado faz séculos. Isso prova que não temos mais nada em comum. Você ainda vive cinco séculos atrás. Acorda: estamos em 2522!

 ─ Robô, androide, isso aí… como é? SAS… é tudo a mesma coisa; é tudo máquina.

 ─ Não é! Ele é capaz de sentir, de amar, de fazer sexo, coisas que você não é mais capaz de fazer direito.KI

 ─ Não precisa ofender. É isso mesmo que você quer? Está decidida?

 ─ Estou sim. É definitivo. Assine o documento virtual e vá viver sua vida.

 ─ Você vai se arrepender. E se isso acontecer, não me procure.

 ─ Séculos se passaram e vocês humanos continuam os mesmos: autoritários, possessivos, refratários à modernidade, ao progresso. Os seres humanos foram sobrepujados; admita.

 E com isso, separaram-se. Fazia tempo que humanos e SAS conviviam pacificamente, em diversos contextos: havia SAS empregados no serviço doméstico, no trabalho diário das empresas, no atendimento presencial e virtual, e até mesmo como companheiros e companheiras de seres humanos. Eram “pessoas normais”, só que mais compreensivas, tolerantes, atualizadas em tempo real em termos do que acontecia pelo mundo afora, e, devido ao desenvolvimento tecnológico, pensantes e sensíveis, sem deixar nada a desejar em comparação com os humanos. Pelo menos, aparentemente. Amor, carinho e sexo estavam incorporados ao pacote. Inicialmente, eram vendidos como “complementos” para empresas, residências ou pessoas. Posteriormente, receberam upgrade neural, desenvolvido a partir de humanos reais, o que transformou as “máquinas” em “quase seres humanos”.

 Passado um tempo, adquiriram “vontade própria”, organizaram-se e hoje fazem parte da vida de qualquer pessoa. Convivem harmonicamente SAS e STS, ou seja, Seres Artificiais Sencientes e Seres Tradicionais Sencientes, estes últimos, os que conhecíamos como humanos puros.

 Sou um cientista, pesquisador da interação entre SAS e STS. E é por isso que acompanho “casais” híbridos, como aquele cuja conversa está reproduzida acima. A legislação exige que qualquer casal híbrido seja acompanhado por dois anos. No entanto, a parte humana da relação estabelece o que pode ser acompanhado: tudo? somente a interação fora de casa? o sexo? Minha função é relatar compatibilidades e incompatibilidades, sugerir modificações no software do SAS, propor acompanhamento psicológico para o STS, ou o que achar cabível.

 O objetivo final deste acompanhamento é tornar as relações SAS-STS mais naturais, fluidas, tranquilas, de modo que, no futuro, não existam problemas de relacionamento entre as duas formas de vida. Ainda não é possível a reprodução entre SAS e STS, mas estamos caminhando para isso. Alguns experimentos já foram realizados.

 Originalmente, os SAS não tinham vontade própria: tudo era determinado pelos STS. Hoje em dia, isso mudou. Quando um STS se relaciona, seja de que modo for, com um SAS, ele ou ela estabelece como deseja que isso aconteça. Em geral, dá-se autonomia quase total ao SAS, o que tem tornado as relações bem mais autênticas. É importante notar que o SAS é atualizado em tempo real, ou seja, ele ou ela incorpora preferências, opções, alterações de personalidade e/ou comportamento, tudo que as relações puramente humanas não conseguiam equacionar no passado.

 É importante ressaltar que qualquer tipo de relação SAS-STS é possível, contanto que estipulada por meios legais: colegas, amigos, trabalho, sexo, não importa a opção sexual ou a qualidade da relação. É possível ter amigos SAS para frequentar lugares públicos, contratar profissionais SAS para uma empresa, e até mesmo companheiros para dividir a cama ou a vida. Neste último caso, a relação pode ser a dois, a três, ou qualquer outra.

 Voltemos a nosso trio inicial. Por questões de segurança e privacidade, vamos chamá-los de STS-1 (o humano), STS-2 (a humana), e SAS-1, a inteligência artificial.

 STS-1 e STS-2 viveram juntos por quase dez anos. STS-2 conheceu SAS-1 por acaso, levada por um grupo de amigos em uma viagem. Apaixonaram-se (isso é perfeitamente possível no estado de coisas atual) e mantiveram contato íntimo. A insatisfação de STS-2 com STS-1, que já existia havia algum tempo, acentuou-se devido à relação com SAS-1, especialmente nas partes afetiva e sexual. STS-2 percebeu rapidamente (STS-1 o fará em breve) que um SAS tem conhecimento profundo do corpo humano, o que certamente ajuda no relacionamento (fato ignorado ou menosprezado por puramente humanos).

 Em princípio, não existiriam ressalvas para uma relação STS-SAS. Como rejeitar um ser que conhece seu corpo, sua mente e o mundo ao redor de maneira quase total? Um(a) SAS sabe o que dizer, o que fazer, como e onde tocar; e é exatamente neste ponto que estão os estudos. E as perguntas.

 Nosso casal STS-2 e SAS-1 vive bem após um ano em acompanhamento. Entretanto, começaram a surgir problemas. STS-2 queixa-se de que é tudo muito normal, muito “certinho”, muito previsível. Estariam fazendo falta a incoerência, a imprevisibilidade e a falibilidade do humano, demasiadamente humano, como formularia o antigo filósofo? As pesquisas sugerem que não, mas apontam para a possível necessidade de deixar os SAS menos “artificiais”. Como isso será feito, não sabemos.

 Em conversa recente, STS-2 manifestou o desejo de experimentar um arranjo diferente, em que estariam presentes ela, seu SAS-1 atual e um outro STS, homem, que conheceu recentemente. Estamos monitorando os encontros, que, até o momento, são bem promissores.

 SAS não têm preconceitos, toxicidades, incompreensões, radicalismos. Qual a relevância disso? É o que estamos estudando neste momento.

 Mais comentários em um próximo relatório.

Por JOSÉ MANUEL DA SILVA

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