CONTOS E MINICONTOS – Ri Melhor Quem Conhece os Clássicos por Dias Campos

CONTOS E MINICONTOS – Ri Melhor Quem Conhece os Clássicos por Dias Campos

Continuação…

O ambiente se tornava cada vez mais amistoso; e a tal ponto, que a acompanhante de Carlos Sampaio deixava da sua prevenção e se revelava uma ótima piadista.

E como quisesse que seu peixe pensasse que poderia continuar nadando livremente, o ardiloso pescador perguntava se ele já tinha publicado algum romance, pois se fosse tão bom quanto o conto que lera, compraria um exemplar assim que retornasse à capital.

Pedro Garrido sentiu-se lisonjeado. Aduziu, no entanto, que apesar de todos os feedbacks positivos que recebera até o momento – já ganhara vários prêmios literários –, não daria para afirmar, cem por cento, que seu romance seria um sucesso meteórico; mesmo que adorasse o que escrevia.

E se o ouvinte interpretava extremo interesse, de igual forma o convencia de que, mesmo inacabado, seu livro já o deixava com água na boca.

Dessa forma, o iludido assegurou que o avisaria quando o concluísse; e os namorados prometeram não faltar à noite de autógrafos.

Pedro Garrido perguntou ao “novo admirador” o que fazia da vida.

Carlos Sampaio respondeu que era sócio majoritário de uma grande lotérica no centro da cidade, batizada de Buraco da sorte. E, abusando da indelicadeza, afirmou que, ao contrário da dúvida que paira sobre o escritor iniciante, sua remuneração era certa, e seus lucros, inevitáveis. Afinal, fizesse sol ou chuva, ele ganharia com os bilhetes e as apostas, com as comissões que incidem sobre a venda de outros produtos e pelo recebimento de contas de telefone, gás, luz, etc. – Dita a localização, e Pedro Garrido se lembrou de que, vez por outra, passava por lá e fazia uma fezinha.

Como percebesse que essa cutucada bambeava levemente o humor do seu peixinho, Carlos Sampaio decidia-se por começar a recolher a linha. Foi quando passou a relembrar do bullying que praticara contra ele.

E a cada cena descrita – por sinal, com requintes de detalhes –, mais risadas dava e mais se comportava como se estivesse agradando.

Sua namorada, porém, despertou para a realidade no mesmo instante em que lhe ouviu a primeira recordação. E ficou sem saber o que fazer, tamanha a vergonha que a possuía.

A alma gêmea de Pedro Garrido – para quem nunca contara sobre o bullying –, e que no início até sorria, pois pareciam lembranças engraçadas revividas por velhos amigos, tocava-se de que tudo tinha sido verdade, quando, ao se virar, notou a profunda mudança na fisionomia.

Pedro Garrido empalideceu. Os lábios estavam cerrados; os olhos, fixos no covarde, já se umedeciam; e sua mão direita tremia sobre a mesa, depois que lhe caiu a colher.

Constatado o estrago, Carlos Sampaio não se furtou em dar mais uma paulada. E o fez afirmando que era tão certo continuar a ganhar dinheiro ao final de cada mês quanto era inevitável levar à sua boca mais uma colherada de sopa de cebola – e caprichou na gesticulação.

É desnecessário mencionar que não havia mais clima para continuarem o jantar.

Pedro Garrido e sua noiva levantaram-se em silêncio. E antes de irem em direção ao caixa, deixou claro que pagaria metade da conta. E se foram.

Carlos Sampaio ainda teve ânimo para pedir sobremesa. Mas não conseguiria apreciá-la como pretendia, pois teria que aguentar bem mais de uma reprimenda.

E se a lua cheia prosseguiria em sua vereda celeste convidando os jovens ao amor, naquela noite, pelo menos, dois dos muitos casais não lhe responderiam ao chamamento.

Pedro Garrido e sua paixão decidiram antecipar a volta para casa. Não valia a pena correrem o risco de reencontrarem Carlos Sampaio.

Não obstante essa decisão, as férias ainda estavam no início. E sempre haveria um quarto à disposição deles na casa de praia do sogrão.

E para que não tivessem que passar horas explicando o retorno antecipado, resolveram pôr a culpa em um surto de carrapatos que tomara conta da cidade. E que ninguém se preocupasse, pois o dinheiro seria devolvido sem tardança.

Por fim, como não queriam reavivar os dissabores por que passaram, prometeram não mais tocar nos assuntos bullying e Carlos Sampaio.

Seguiram-se as semanas de descanso e os prazerosos bate-papos à beira-mar; sendo que as caipirinhas e as porções de camarões fritos degustados sob os guarda-sóis foram essenciais à recuperação física e mental dos noivos.

 Terminadas as férias, e de volta ao seu apartamento, Pedro Garrido lembrou-se de que deixara algumas pendências para serem resolvidas. Além da dispensa que estava às moscas, teria que trocar duas lâmpadas queimadas, consertar uma torneira que pingava e comprar veneno para acabar com as formiguinhas que adoravam passear sobre a pia da cozinha. Sendo assim, dirigiu-se, à tarde, ao centro da cidade, onde já era freguês de uma loja especializada.

Mas se não se esquecera dessa loja, certo estabelecimento tinha-se apagado de sua memória…

E quando dele se aproximou, notou o desapontamento e as reclamações de algumas pessoas, que quiseram apostar e pagar as suas contas, mas deram com as portas de aço desenroladas.

Concatenando as ideias, Pedro Garrido recordou a conversa que tivera com Carlos Sampaio naquela fatídica noite… Tratava-se da Buraco da sorte.

E um frio antártico subiu-lhe pela espinha!…

Essa gelidez, entretanto, logo passou, pois a ordem judicial, afixada no mesmo dia e pela manhã na porta da casa lotérica, demonstrava que as chances de revê-lo naquele dia seriam mínimas – era provável que estivesse implorando ajuda ao seu advogado.

Neste exato momento, as palavras ditas e encenadas por Carlos Sampaio naquele restaurante nas montanhas, equiparando a certeza de se ganhar dinheiro com a de se levar à boca uma colherada de sopa, e que, malgrado o seu esforço por esquecê-las, ainda lhe surgiam como vultos agourentos, perdiam para sempre o seu poder de humilhar.

Por força desse insight, uma ideia lhe vinha à mente. E ele puxou de uma caneta…

Em seguida, resolveu adiar as compras, e retornou às pressas para a sua residência.

Já defronte à tela do computador, começou a escrever um conto.

Sem dar nomes aos bois, Pedro Garrido iria recontar os acontecimentos por que passou, desde o bullying que sofreu quando jovem até o reencontro com o maior dos seus fantasmas. Por fim, e com o auxílio dos Clássicos, Carlos Sampaio receberia uma lição que por certo jamais esqueceria.

No dia seguinte, Pedro Garrido contatou o responsável pelo jornal do grêmio estudantil da sua Faculdade e perguntou se ainda teriam interesse em publicar mais um dos seus contos. A aceitação foi imediata. E ele o enviou por e-mail.

Passados poucos dias, não apenas o autor receberia o seu exemplar, mas, também, o caçula da família Sampaio, que ainda não se formara e que não deixara de admirá-lo.

E como previra Pedro Garrido, após ouvir do irmão sobre a incrível semelhança entre a ficção e o que acontecera à sua lotérica, Carlos Sampaio, muitíssimo desconfiado, agarrou o jornalzinho e foi àquele texto.

Depois de alguma leitura, o arrogante não tinha dúvidas sobre quem eram, de fato, os personagens principais. E até bateu palmas para Pedro Garrido pela coragem de se expor daquela maneira.

Mas se Carlos Sampaio se deliciava a cada período, seu bom humor mudaria assim que passasse a ler o final da história.

Pedro Garrido imaginou que o protagonista recebia um telefonema do seu funcionário avisando que a lotérica tinha sido fechada por ordem do juiz.

Ato contínuo, o vilão quase teve um enfarte, pois via secar a sua mina de ouro. – Por coincidência, foi isso mesmo que aconteceu a Carlos Sampaio.

Mas como não tinha chegado a sua hora, ele conseguiu recuperar as forças, e o raciocínio, e pediu mais detalhes ao empregado.

O pobre moço, então, achou melhor fotografar a ordem de lacração e enviá-la pelo celular.

Recebida a foto via WhatsApp, o patrão precisou ampliá-la, pois não queria perder nenhuma informação.

E depois de se inteirar sobre o conteúdo da decisão, notou, logo abaixo, em letra cursiva e à caneta azul, a frase Tra la spica e la man qual muro he messo.

Ele só não deu de ombros porque a fonte colocada entre parênteses chamava muito a atenção – Os Lusíadas, Canto Nono, Estância 78.

Não que essas inserções fossem mais importantes do que a desgraça que o abatia. Mas como só saberia o que fazer depois de consultar com o seu advogado, e porque a curiosidade era a sua marca registrada, a vítima da interdição estatal não se conteve e foi ao Google pesquisar.

O fato de ser um verso escrito por Petrarca e transcrito por Camões em nada mudaria a vida do desafortunado. Mas a sua tradução, esta, sim, faria com que Carlos Sampaio se arrependesse para sempre do gesto que um dia praticou – Da mão à boca se perde muitas vezes a sopa.

Por DIAS CAMPOS

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