CONTOS E MINICONTOS – Um sonho, duas nudezas e a música por Valterlucio Campelo

CONTOS E MINICONTOS – Um sonho, duas nudezas e a música por Valterlucio Campelo

Há um sonho que me rapta desde a adolescência. Muitas vezes ele me deixa acordar e apenas me conforta, como se fosse um sonho qualquer. Outras vezes ele me prende, me machuca e dispensa sem culpa. Sinto que se esforça para manter-me, mas devo acordar, sem nem saber para quê. Poderia deixar correr o tempo e explorar para sempre as possibilidades infinitas daquela espécie de onirismo? Seria loucura, melhor não.

Certa vez ele me levou a uma ponte muito alta, tanto que de cima não se via o rio correndo lá embaixo. Na verdade, eu via apenas uma névoa, estava angustiado e queria pular. Tentei ver a água aonde eu cairia, mas não era possível saber. O rio correndo era só uma dedução, não uma certeza. Poderia estar seco e cheio de pedras. Acordei angustiado com essa indecisão.

O sonho costuma me pregar peças. Outra vez ele me pôs a andar num shopping desconhecido. Eu entrava de loja em loja, tocava nas coisas, olhava ao redor sem comprar nada, enquanto os atendentes nem sequer me notavam.

Nenhum vendedor se dirigiu a mim, nenhuma garçonete me ofereceu um folheto com cardápio. Nada. Era como se não me vissem. Tentei chamar a atenção de uma moça bem vestida que jantava sozinha, sentei-me à sua frente e nada. O sonho desistiu de mim e acordei chateado. Como assim? Como ser invisível a todos?

Conheci o Alaska levado pelo meu sonho. Penso que era o Alaska, mas poderia ser qualquer lugar muito frio. Não sei que memórias recônditas em meu cérebro ajudaram meu sonho a me levar tão longe. O frio era insuportável para mim, mas não para as outras pessoas. Todas vestidas em confortáveis casacos, admiravam esculturas de gelo e tiravam fotos. Eu não. Dessa vez, muito incomodado, eu mesmo me libertei do sonho.

As pessoas costumam eleger o sonho que as fazem voar como o mais bonito e prazeroso. Aquele sonho nunca me levou para voar simplesmente como pássaro sobre paragens e cidades. Ele guarda para mim situações incomuns, inéditas, inesperadas.

Esqueci de dizer, mas mais de um sonho me tem quando querem. Nem os reconheço de tantos que vem, me pegam, me deixam e não voltam. Já voei com eles, já estive em lutas, em jogos, em corridas, em muitas cidades. Às vezes, vem os maus. Eles me levam a precipícios, a cemitérios, a lugares perigosos, a desertos infernais de tão quentes. Não me importo com eles, são só sonhos.

Me importa o sonho que me possui desde a adolescência. Este nunca me deixa conversar com ninguém, nem deixa que me respondam. Quando estou n’ele vejo tudo e a todos, mas ninguém percebe a minha presença. Parece um sonho cruel, mas não é. Também já me levou a lugares e situações deslumbrantes, vi a aurora boreal, vi as estrelas de perto, vi a terra de longe, ouvi sons novos e vi cores que nenhum olho conhece. Só não falei com ninguém.

Na última vez que me procurou, meu sonho me levou a uma solenidade. Uma espécie de baile precedido de discursos e agradecimentos. Entrei sozinho naquele lugar cheio de gente importante, cruzei todo o salão e, sem que ninguém me notasse, fui em direção à mesa que estava posta com petiscos e canapés finos. Nenhum garçom me ofereceu sequer uma bebida. Eu já sabia como funcionava. Poderia ficar o tempo que quisesse e ninguém me notaria beliscando os pratos. Me diverti tentando adivinhar de que eram feitos cada um e quase sempre errando.

Foi quando de longe vi uma mulher no meio da multidão. Ela andava sozinha, completamente nua, era linda, aparentava uns trinta anos e vinha em minha direção. Aproximou-se e disse baixinho ao meu ouvido – você está nu. Respondi-lhe, assustado – você é que está.

Nos afastamos um do outro, cada um se olhando para conferir. Não, eu não estava nu. Ela disse – você está louco? Eu não estou nua, você está.

Vi que a conversa não progredia, então a convidei para sair dali. Talvez em outro lugar, sozinhos, nos entendêssemos. Ela aceitou sem muita convicção, mas certamente estava tão assustada e curiosa quanto eu. Fomos pro jardim.

─ Eu estou mesmo nua pra você? me perguntou enquanto tentava cobrir os seios.

─ Sim, está, respondi também tentando me cobrir.

─ Não entendo. Quem é você?

─ Sou um homem comum, escritor, não sei como vim parar aqui.

Nem eu. Falei com um monte de gente, mas ninguém me vê, apenas você me viu e falou comigo.

─ O mesmo acontece comigo. Não é a primeira vez, já estou acostumado, é sempre assim. E com você?

─ É a terceira vez que vagueio por aí sem ninguém me ver. É muito estranho, ninguém me percebe.

─ Eu percebi você vindo e agora estamos aqui, conversando. Só que você está nua, devia se vestir.

─ Já disse que não estou. Você é que está.

─ Bem, se você não se percebe nua, isso deve significar alguma coisa.

─ Então, serve pra você também O que acha que significa? perguntou.

─ Não sei. Será que não nos enxergam porque estamos em outro plano?

─ Boa. Talvez estejamos em outra dimensão. Deve ser por isso que estamos nus.

─ Tá, mas por que você não se vê nua? 

─ Acho que não posso. Talvez se me enxergar despida, eles também me enxergarão. Vamos voltar à festa.

─ Pode ser! Como faríamos para que nos vejam?

─ Talvez se nos tocássemos? Me dá sua mão.

Dei-lhe a mão na esperança de que por algum modo nos revelássemos às pessoas ali presentes. Foi em vão. Não aconteceu nada. Continuamos como estávamos. Não deixei, porém, de notar que sua mão era quente, viva, pulsante. Menos mal. Detestaria que fosse gelada como se estivesse morta. Ela sentiu o mesmo, porque em seguida disse que eu minhas mãos eram fortes. Bom também.

 ─ Bem, pelo menos estamos vivos. Podemos tentar outra coisa.

─ O quê, por exemplo?

─ Primeiro me diga seu nome. Eu sou Augusto.

─ Prazer, sou Luisa.

─ Você quer dançar, Luisa? Talvez dançando, esse encantamento se desfaça. Tem essa música… quem sabe?

─ Tá louco? Você está nu!

─ Não seja por isso, você também está.

A essa altura, alguns casais se movimentavam no centro do salão. Era uma música suave, bem aos anos 80, de antes que virassem animadoras de quadris. Era conveniente dançar naquele momento.

Ela ficou relutante por uns instantes. Me olhava de soslaio, talvez tentando descobrir algo mais que um corpo nu atônito. Eu tentava disfarçar e cobrir-me quanto possível com as mãos.

Relutante, ela disse: “Vamos, mas não encosta!”.

Pensei em como dançaria sem “encostar”. De todo modo, fui em frente. O máximo que poderia ocorrer seria o mínimo que ocorre normalmente.

─ Claro! Nem pensei nisso. Só estou tentando dar um jeito na situação, respondi.

Com isso, dei-lhe o braço e levei-a ao centro do salão. Começamos a dança olhando pros lados para ver o que acontecia. Nada. Eu, sem “encostar” e Luisa séria, sem um sorriso sequer, enquanto dávamos voltas. Isso até que um casal esbarrou nela por trás e jogou-a em cima de mim. Amparei-a e, obviamente, “encostei”. Encostados ficamos.

Ela não recuou e eu muito menos. Aos poucos, de rostos colados, o inevitável. Cheiro bom, pele macia a queimar, lábios a um centímetro, corpos encostados. Não poderia ser diferente. Um longo beijo, sem nos importarmos com quem estava dançando, ou servindo, ou tocando, ou bebendo.

A natureza fez o resto. Em minutos estávamos sobre uma das mesas, sem ninguém nos olhando. Eles não nos viam e a essa altura, não nos importávamos. A música continuava tocando. Parecia obedecer aos nossos movimentos ou, talvez fosse o contrário, nossos movimentos eram regidos pela banda. Até que a música e nós entramos em clímax, tudo junto. Uma verdadeira apoteose. De repente, o silêncio.

Eu e ela recuperávamos o fôlego, quando ouvimos uma salva de palmas e nos recompomos para ver o que estava acontecendo. Se tratava de nós. De frente, aplaudindo, a nos olharem, todos os presentes. Fiquei atônito por alguns instantes. Quando me virei novamente para ela, a vi ao meu lado, sorrindo maravilhosamente em um lindo vestido vermelho.

Por VALTERLUCIO CAMPELO

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