Ele se mirava, se apalpava, se sentia. Estava totalmente nu diante do espelho. Suas mãos iam e vinham, esgueiravam-se devagar por todo o corpo, como serpentes. Súbito, foi interpelado pela mãe, cuja face amarelada pela viuvez o espreitava. “Para com isso, Nico! Que coisa horrível! Fica longe da minha penteadeira! Se pego você fazendo isso de novo, leva uma surra pra nunca mais esquecer!”.
A voz de trovão da mãe fez as pernas dele tremerem. Seu sangue gelou. Suas mãos encolheram, viraram lagartixas assustadas. Seus cabelos longos, loiros e lisos, se aquietaram. Aos onze anos, diante do espelho que o engolia, Nico se perguntava se era certo ou errado se sentir mulher.
…
A suíte tinha cortinas claras e vista para o mar. Com avidez infinita, o homem devorava as orelhas dela, misturando saliva e palavras obscenas. Queria muito se esquecer do que dera errado naquele dia: a Bolsa despencara e o dólar fora às alturas, quase furando o céu.
O sexo exigiu uma pausa. O homem, um dos reis dos secos e molhados da cidade, não era rei de nada quando a vontade de urinar se impunha. Então ele se levantou, correu até o banheiro, aliviou-se do tormento que o açoitava e, voltando para a cama, pôs na taça o restante do vinho, desandando a falar por imperiosa necessidade de não ficar quieto. Reclamava do filho ambicioso, dos prejuízos nos negócios, da desatenção da esposa. Em absoluto silêncio, ela, as orelhas ainda doídas, sorria. De repente, o homem se calou, sua cabeça rodava muito, e em menos de cinco minutos caiu num sono pesado.
À medida que a madrugada avançava, a loira sentia um estranho incômodo crescer no peito. Um pouco trêmulas, suas mãos secavam no lençol o suor frio que as encharcava. Por que fez o que lhe mandaram fazer? O homem agora se remexia todo e tinha aspecto ainda mais horrível. Estaria a um passo da morte? Ela, o coração aos saltos, achava que sim. Mas, de repente, ele acordou, sentando-se na beirada da cama. Levou uma das mãos à cabeça e a massageou devagar, maldizendo os últimos goles do vinho enquanto olhava para ela, que fingia dormir. Com um gesto inadiável, pegou uma cartela de drágeas milagrosas. Duas ou três delas haveriam de aplacar a dor terrível e lhe devolver o sono. Engoliu-as em seco, esparramando-se de novo na cama. Minutos depois, sonhava. Via-se em um castelo rodeado por montanhas assustadoras. Sinistro, o vento assobiava enquanto a luz dos lampiões espalhados ao longo de um imenso corredor tinha dificuldade para passar por entre as frestas dos pesados reposteiros. No quarto quase às escuras ele, o rei, e a rainha loira se amavam sob mantas de ouro. Crawl! crawl! crawl! O cão de caça latia enfurecido. “Temos que entrar pra viver”, gritavam lá fora centenas de pessoas amassadas pelo frio. Do alto das muralhas, guardas jogavam óleo fervente em cima delas.
A loira levantou-se da cama e foi até o banheiro. O sono agitado e barulhento do homem, talvez um sinal de que em breve a morte o viria abraçar, não poupava os ouvidos dela. Com o que ou com quem ele estaria sonhando? – perguntava-se em silêncio. Vinha-lhe então uma dúvida alucinante: fez o que fez por amor ou por temor ao filho dele? Estava quase certa de que por amor não fora.
Depois de se banhar por longos minutos, ela fechou o registro da água quente e ficou a contemplar o escorrer das últimas gotas. Quando saiu do box de vidro fumê, uma torrente de palavras sem nexo chegava ao banheiro. Não podia imaginar que no sonho do homem surgiam crianças do mundo inteiro, crianças macérrimas cantando e pedindo o milagre dos pães.
Junto à pia de granito negro, uma toalha de banho permaneceu intocada. Mesmo sentindo um pouco de frio, a loira deixou o corpo molhado secar naturalmente, evitando assim que aquele pedaço de pano encardido e áspero lhe arranhasse a pele sensível. Pensamentos confusos a assaltavam, fustigando sua alma com um quê de remorso. Precisava escoar essa sensação ruim tão rapidamente quanto há pouco o ralo ruidoso do box fizera escoar a água que lhe acariciara o corpo.
Agitado, o homem ainda sonhava. Crawl! crawl! crawl! Dentes de lobisomem brilhavam na boca escancarada do cão, o castelo sumira e no seu lugar havia um moderno hipermercado. Mais pessoas berravam: “temos que entrar pra viver!”. Forçavam cadeados e grades, quebravam vidros enquanto os guardas assistiam a tudo, impassíveis como bonecos de cera. Suando muito, ele mais uma vez despertou. Não vendo a loira ao seu lado, gritou com voz de comando:
“Nicete!!!”.
“Que foi? Tá passando mal?”, respondeu ela prontamente.
Sacudindo-se, o homem esfregou com dedos nervosos os olhos ainda embaçados.
“Não, tive um sonho horroroso”.
“Foi vinho demais”.
“Vem pra cá!”.
Ela o obedeceu, mexendo as ancas e tocando o sexo com as mãos de serpente. O pó que cuidadosamente dissolvera no vinho sem que ele visse não funcionara. Era um veneno infalível, garantira o ambicioso filho dele, fazia o coração parar e não deixava vestígios no sangue. Mas não funcionara. Isso deu a ela um alívio manso e profundo – não ia carregar morte alguma nas costas – e também a fez se lembrar das palavras de um ex-namorado: “a gente só morre na hora marcada”. Imaginou então um anjo, com cara de eunuco, vigiando o mundo com paciência imortal. Nas mãos, o anjo tinha uma longa lista de nomes que às vezes riscava, às vezes não. Certamente, pensou enquanto fazia novas caras e poses, a hora daquele homem podre de rico ainda não tinha chegado.
De frente para ele e de costas para um jogo de espelhos, Nicete, que um dia foi Nico, se apalpava gulosamente, os longos e loiros cabelos soltos no ar. Oito anos haviam se passado desde que levara uma surra inesquecível da mãe. Bem longe da penteadeira dela, sem voz de trovão nos ouvidos, sem face amarelada por perto, já não se perguntava se era certo ou errado se sentir mulher.
Por RENATO MOURA