CONTOS – Meu crime foi viver por Angelo Asson

CONTOS – Meu crime foi viver por Angelo Asson

Eu não aguento mais viver! Meu corpo está me abandonando. Talvez ele já não esteja suportando o fato de eu ainda estar vivo. Minha sombra côncava o incomoda. Todo santo dia ele vê diante do espelho alguém com quem não se identifica. O excesso de convivência corrói qualquer tentativa de relacionamento duradouro. Talvez ele me odeie tanto quanto eu o tenho odiado desde que a minha juventude se foi, no século passado, levando consigo minha pele lisa, meus movimentos ágeis e minha potência sexual. As dores me invadem e fazem morada nas articulações, não durmo direito, os sonhos não vêm para me resgatar do pesadelo da vida. Há décadas não comemoro mais aniversários. São décadas passadas num presídio carnal, sem saber o porque do encarceramento. Talvez o fato de ter respeitado em demasia o tempo e o seu poder de destruição. Talvez por ter tido tantos cuidados comigo mesmo, posto que somos o que comemos, o que fazemos, o que falamos. E a genética… ah, a maldita genética que faz do meu corpo um zumbi imortal que ignora a finitude. E a ciência e a sua eterna mania de preservar os seres humanos feito pepinos em conserva em prol de uma vida mais perene. Deixo um aviso aos jovens: esqueçam a vida saudável, só se prolonga a velhice!

Risco os dias que passam céleres nas paredes do meu cérebro feito um detento a cumprir pena, sem direito a advogado ou habeas corpus, ou a revisão de pena ou, que seja — e até me bastaria —, um único telefonema para mandar todo mundo tomar no cu! Preso sem mordomias, aliás, as poucas que restavam me foram tiradas sem a menor cerimônia. O direito a assistir não o tenho, pois que a vista só enxerga vultos disformes; ouvir o que me dizem, só a muito custo e após repetidas vezes proferida a mesma frase, e em volume cada vez mais alto e impaciente. Caminhar? Só com o auxilio da bengala ou de almas caridosas que me escoram os passos miúdos que consigo dar. Como só o que me permitem ou o que a garganta aceita engolir; ou as incontáveis pílulas esbranquiçadas que saltitam das receitas feito carneiros que já nem conto mais antes de dormir. Mais jovens e ligeiros, certamente já pularam a cerca dos sonhos e se afastaram pela terra batida do anoitecer. Resta a poeira seca da insônia.

Falo com dificuldade, o pulmão mal consegue soprar as palavras corpo afora. Meu advogado-memória que me defendia contra o que não fiz, pelo visto, arranjou outro cliente. Solto flatos sem notar, pois não escuto a flatulência, não sinto o ânus vibrar. Borro as calças, escarro durante as refeições, falo o que me vem à telha, velho que sou… e livre! Que se foda o ouvido que se presta à atenção de me ouvir.

Vamos, me leve ao sol, um pouco que seja para que eu possa fechar meus olhos que pouco veem, para que eu possa assistir na tela escura da pálpebra o filme da minha vida! Quero, ao menos, ter o direito de reclamar do que fiz de errado e do que teria sido de mim se tivesse caminhado por outras estradas. Tento descobrir qual foi o meu pecado diante do júri acusatório. “És um velho gagá!”; “Deus se esqueceu de ti!”. Diz a sentença que me cuidei em demasia. Tivera eu sido um pervertido, um drogado, um arruaceiro; tivesse ingerido alimentos da pior procedência, inalado fumaça de cigarro, carros e baseados; frequentado puteiros, pegado doença venérea ou tuberculose; tivesse tido várias ex-esposas, incontáveis filhos, até desconhecidos; tivesse trocado sopapos na rua, apanhado da polícia, dirigido embriagado pelo vício do álcool, passado noites em claro com vagabundas…

Mas não. Me comportei segundo a cartilha que pregava que eu não prejudicasse nem a mim, nem a ninguém; que eu cuidasse do meu corpo, instrumento portador da alma; que eu não mentisse; que não traísse; que não cobiçasse o sexo oposto, a não ser pela preservação da espécie; que eu orasse; que eu trabalhasse; que eu levasse uma vida saudável! Sinto que fui enganado. Qual a intenção de tantos cuidados? Prolongar a minha pena? Imagino que estejam a gargalhar neste momento, embriagados ou com a mente afogada em drogas pesadíssimas, do alto de suas posições de deuses detentores de todo o saber da vida — alheia —, do que se deve ou não fazer, de modo que, no final, restem apenas as aves de rapina, ou as hienas a se divertir com o que resta de mim antes que eu seja devorado pelas dilacerantes presas da vida.

E enquanto meu corpo se desfaz, me rendo à certeza de que o meu crime foi viver! Não como deveria, mas viver o engano ao qual me dediquei até hoje.

Por ANGELO ASSON

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