A noite era sempre sua maior razão para viver. Era a motivação para trabalhar em tarefas monótonas o dia todo, para não se desesperar com o salário miserável, para não se abalar com a idade e as mazelas dela derivadas, além da fuga perfeita para a solidão constante e o vazio existencial. Bastava o sol se pôr para sentir em suas entranhas novo alento, energia renovada e a vontade inabalável de chegar a casa e iniciar seu ritual de toda noite. Sim, tratava-se de um ritual que precisava ser seguido à risca para que surtisse o efeito desejado, qual fosse o de preservar sua vontade de viver até o dia seguinte.
Entrava no apartamento bagunçado, tirava a roupa, tomava banho, ligava a televisão, atualizava-se pelo celular, comia alguma coisa, tomava duas taças de vinho suave, e começava a sentir o tão desejado relaxamento. Se houvesse uma foto ou um vídeo daquele momento, seria possível perceber que sua fisionomia se modificava, ficava mais relaxada, talvez até fosse possível detectar um início de sorriso nos lábios. Uma sensação de paz e tranquilidade tomava conta de todo seu ser, como que vinda de alguma outra esfera vibracional. Este era o ponto de não retorno, era o momento em que se transformava em outra pessoa, em que o mundo mudava de significado, em que o real parecia desaparecer e dar lugar a uma nova realidade; o entorno deixava de ser o que fora até então e se transformava em um mundo paralelo, igual ao mundo normal, mas diferente: melhor, mais puro, mais sensível, mais nítido, mais verdadeiro.
Levantava-se, desligava a televisão, ia para o quarto, ligava o equipamento de som e se acomodava na poltrona reclinável, decidindo qual seria o fundo musical para aquela noite específica. A seleção era baseada no que acontecera durante o dia, em alguma lembrança, em algo ou alguém que vira no caminho, em alguma cor, em algum odor, em algum ruído, em alguma sensação, em algum pensamento fugaz; não havia uma regra. Mas era essencial – essencial! – escolher a trilha sonora com base nas últimas vinte e quatro horas. A escolha poderia recair sobre uma canção, uma banda, um compositor, um show, um estilo de música, mas, uma vez feita a escolha, não haveria mudança; a próxima fase do ritual dependia intrinsecamente daquela decisão definitiva.
Decisão tomada, deitava-se confortavelmente na cama, apagava todas as luzes, deixava o áudio ou o vídeo em funcionamento e se entregava ao que viesse à mente. Esse era o plano, esse era seu projeto de vida dos últimos anos. Esse era seu fluido vital. Entregava-se à música, aos instrumentos, à performance dos músicos, ao visual do concerto, à vibração do contrabaixo, à percussão, às trocas de ritmo, ao encadeamento de notas, às modulações, às mudanças de tonalidade, ao timbre da voz de quem cantava, aos baixos e aos agudos, e, quando era o caso, às letras, ou seja, aos poemas musicados. Sabia que, em algum momento, sua viagem noturna começaria, motivada e influenciada pelo que ouvia ou via.
Já fizera viagens interplanetárias, em naves, ou, inexplicavelmente, sem roupa, viajando pelo universo; já retornara ao passado e conversara com conhecidos e desconhecidos; já revivenciara situações que decidira manter iguais ou modificar; já visitara lugares que inventava; já passara por épocas que só conhecia pelos livros e pelos filmes; já fizera sexo com pessoas que jamais encontraria pessoalmente; já conversara com celebridades; já fora uma celebridade; já fora do bem e do mal; já morrera e matara; já fora pela liberdade e pela repressão; já fora homem, mulher, multigênero, de cor branca, preta e amarela; já fora animal; já fora vegetal; já fora mineral; já fizera parte da extrema pobreza e da extrema riqueza; já mandara e já obedecera; já fora tudo e já fora nada; já até morrera.
Tudo era uma combinação entre a música e a noite. Tentara repetir a experiência durante o dia e não conseguira. Era como se a noite criasse o caldo ideal para a elucubração, para a libertação, para o afloramento da emoção, e a música potencializasse o sentimento, catalisasse a diversidade de pensamentos em sensações. A noite não existiria sem a música, nem o contrário. Aquela era a combinação obrigatória e necessária e perfeita para que conseguisse sair de onde estava diariamente, viajar para outros estados da mente, para outros mundos, criar e recriar novas realidades, experimentar novas sensações, vivenciar o que jamais vivenciaria em seu dia a dia monótono e repetitivo, em sua vida sem novidades.
Terminada a viagem, que não tinha duração planejada, levantava-se da cama e se dirigia à escrivaninha. Sentava-se com a última taça de vinho e começava a escrever tudo que registrara durante o período em que se entregara à música. Não tinha a menor ideia de qual seria o resultado. Poderia ser um conto, uma crônica, um poema, um microconto, o início de um romance, um bilhete ou simples frases e palavras soltas sem qualquer objetivo.
Encerrado o processo, entregava-se ao sono mais reparador que alguém poderia desejar. Colocava o despertador para um horário em média sessenta minutos antes do necessário, para que conseguisse ler o que escrevera durante a noite. Jamais se lembrava do que escrevia; precisava ler para saber o que produzira. Muitas vezes, era tudo surpreendente, como se fosse outra pessoa que tivesse escrito o texto. Por alguma razão obscura, julgava que havia algo interessante ali, algo a ser preservado. Por isso, armazenava tudo em arquivos digitais que talvez jamais fossem lidos.
A música e a noite, no entanto, talvez se lembrassem para sempre do que lhe haviam inspirado. Essa lembrança insólita e secreta seria seu legado.
Por JOSÉ MANUEL