CONTOS – Nushu por Theodora de Castro

CONTOS – Nushu por Theodora de Castro

Havia estudado engenharia e possuía antigas ambições de carreira.  Era um trator nos negócios e logo se envolveu com política, se perdendo com assessorias e relações infames.  Não durou muito em cada lugar que visitou, com estadias tão breves quanto os seus laços. Em uma de suas viagens, foi convidado a conhecer Beijng e diante da magnitude do convite, impossível declinar. Seguiu para a China com poucas roupas na mala e com muitas expectativas. A simpatia chinesa de cara lhe surpreendeu, embora pouco compreendesse o que os gestos faciais lhe mostravam. Como político, acreditava possuir a sagacidade e astúcia de saber “ler” as pessoas.

Uma vez que a língua lhe fosse de impossível compreensão, a observação dos gestos era o que restava para compreender o exótico daquela cultura tão distante da sua. Participou de palestras e atividades políticas, todas em inglês, embora por algumas semanas tenha se esforçado para compreender qualquer som em mandarim que lhe fosse possível.  Foi-lhe sugerido então conhecer a “China profunda”, o que seria mais ou menos uma viagem de algumas centenas de quilômetros por cidadezinhas longínquas, rurais e menos habitadas do que estava a presenciar em Beijing.

Comprou os ingressos de trem e rumou em direção a Xian, com algumas paradas no meio do caminho em cidades tão magníficas quanto o seu destino. Demoraria mais de um dia para chegar a Xian, então aproveitaria a viagem para admirar a paisagem da janela de sua cabine. Antes, faria uma breve refeição no restaurante do trem e para lá caminhou se escorando nas curvas do caminho.

Por pouco tempo permaneceu sozinho com seus pensamentos, logo que uma moça esbarrou em seu ombro e fitou-o rapidamente, pronunciando algum termo que ele mal entendeu. Ele sorriu e em inglês disse que não falava mandarim, mas que tudo bem, não havia problema ela ter esbarrado. Em resposta, ela abriu um largo sorriso e em inglês avisou que não havia se desculpado. Atônito, pediu desculpas para aquela mulher que não era bela em seus termos ocidentais, mas possuía um exotismo que o encantava. Ele convidou-a então para sentar-se com ele e tomar um café, mas do sorriso fez-se um semblante sério, enigmático, como se ela não houvesse entendido o que ele lhe propusera. Acabou por sentar-se de frente para ele e assim ela ficaria por alguns minutos, o observando como quem observa um animal em um laboratório. Sarcástico, disse a ela que sabia ler as pessoas e que descobriria mais sobre ela do que ela sobre ele, propondo de alguma forma, um desafio. Ela virou a cabeça, apertou os olhos como ele fazia com ela, parecendo imitá-lo. Às vezes ela balbuciava algo em sua língua, mas ele fingia que entendia e assentia com a cabeça.

 Ele também a olhava, intrigado com seu rosto, trejeitos e sua roupa vermelha com minúsculos detalhes ornamentais amarelos que lhe causavam certo estupor. Achou estranha aquela roupa tão nobre para uma viagem de trem, mas ficou receoso de perguntar e ofendê-la. Perguntou seu nome e ela disse apenas “Zhu”. “Maurício”, respondeu ele e ela tentou repetir o som que lhe acarretou um embaralho na língua.

Não sabia dizer por que, mas estava completamente encantado por aquela mulher que sorria quando ele estava sério e se tornava séria quando ele sorria. Trocaram algumas palavras sobre a paisagem, ela às vezes parecia compreender e outras não. Ele também fingia que entendia o pouco inglês que ela falava. Até que imaginou que pudesse ir um pouco mais além e perguntar mais sobre ela, que nada respondia sobre si mesma. Em contrapartida, ela perguntou com o que ele trabalhava na China e por quanto tempo iria ficar. Ele respondeu que seu trabalho era muito importante, pois detinha um cargo de poder no Brasil e que seria breve pois tinha compromissos de trabalho em sua terra natal. Zhu então pegou um pequeno guardanapo e escreveu algumas coisas em sua língua e entregou a ele. Sem entender, Mauricio questionou-a o que significava, ao que ela respondeu apenas: “Nushu”.

 Zhu levantou-se, encostou brevemente seus lábios nos de Maurício e foi embora.  Maurício meio desconsertado ainda pela sequência de eventos, viu aquele papel em cima da mesa como algo a chamá-lo para um encontro mais íntimo, afinal ela o havia beijado.  Olhou para trás para segui-la, mas não havia sinal dela. Levantou-se e dirigiu-se apressado pelo caminho do trem em direção às cabines, mas não a encontrou. Será que ela sabe em que cabine estou, ele pensou. Mas quando chegou em seu pequeno quarto, não havia ninguém.

Voltou então para o carro restaurante do trem onde ela poderia estar no banheiro, mas ficou apenas de um lado para o outro sem saber para onde ir. Viajantes olhavam para ele com surpresa e ele os olhava de volta sem saber o que dizer. Perguntou para o rapaz que estava comendo na mesa do lado se havia visto a moça de vermelho que estava com ele, mas a resposta foi negativa. Percorreu novamente todo o caminho até sua cabine dormitório e tal percurso era longo o suficiente para tê-la perdido pelo caminho. Refez o trajeto meia dúzia de vezes e a cada vez que não a encontrava, se exasperava, chegou a achar que estaria sonhando que havia conhecido aquela mulher. Exausto, voltou para sua cabine e desabou na cama.

Foi acordado no dia seguinte com o alto-falante anunciando “Xian” diversas vezes. Correu para pegar sua mala e todos amarrotado saiu do trem para ver se via Zhu sair pela plataforma. Esperou até a última porta do trem se fechar sem acreditar que não veria mais Zhu. Repassou por sua memória todos os trajetos que havia feito no trem. “Será que a havia ofendido? Será que ela desceu em outro ponto da China enquanto eu dormia? Teria a visto e não reconhecido?”  Lembrou-se então do pequeno bilhete que ela lhe entregara e se dirigiu ao guichê de informações de Xian.  Pediu gentilmente para que o rapaz lhe traduzisse o que estava escrito, mas ele balançou a cabeça em negação.

Maurício então seguiu em direção ao hotel onde ficaria em Xian e lá também na recepção mostrou o papel com o pequeno desenho para o atendente que respondeu que não conseguiria dizer. Assim Maurício ficou em Xian, perdendo passeios ou ao menos não aproveitando o que poderia conhecer daquela cidade, visto que só pensava em Zhu e no que significaria o bilhete. Mostrou pela última vez a um homem que parecia local e ele só respondeu que parecia alguma etnia específica e que ele desconhecia a língua.

 Com todo seu esforço em vão, Maurício decidiu por voltar a Beijng e em seguida para o Brasil. Estava devastado, não achara Zhu, não conseguira traduzir o bilhete, afinal, com tantas etnias diferentes na China, como acharia?  Voltou para o Brasil e colocou o bilhete na cabeceira de sua cama e toda noite o observava. Qual segredo ela queria dizer? Será que era uma declaração de amor? Será que ela também esteve envolvida por ele como ele por ela? Decidiu transformar aquele bilhete em um quadro e colocou-o na sala, à vista de todos. Quem sabe um dia alguém o traduziria.

 Os anos passaram e Maurício seguiu em frente diante da paixão perdida. Até que um dia, ao convidar amigos para uma pequena comemoração de seu setuagésimo aniversário em sua casa, a esposa de uma amigo parou na frente do quadro e ali permaneceu por um tempo. De longe, Maurício percebeu o interesse da convidada e foi até ela e ao seu lado comentou: “Uma moça chinesa me entregou este bilhete um dia, há muitos anos. Nunca descobri o que significa.” A convidada então riu e tão-só pronunciou: “Nushu”.

Por THEODORA DE CASTRO

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