CONTOS – O Andarilho por Douglas Mateus

CONTOS – O Andarilho por Douglas Mateus

Há séculos, ele vagava por um deserto sem fim, uma terra de eterna desolação. A contagem dos anos havia se perdido na névoa do tempo, entre o décimo e o décimo primeiro século de sua caminhada solitária. No início, era um capricho, uma fuga da monotonia da imortalidade. Mas com o tempo, o movimento se tornou automático, um reflexo involuntário de sua existência eterna.

O céu acima era uma tela acinzentada, uma abóbada vazia onde o azul do oxigênio já não pintava mais o horizonte. O sol, implacável, queimava a areia e as pedras, transformando o deserto em um forno escaldante. O chão era um mosaico de terra avermelhada, rachada e ressequida, onde pedras irregulares emergiam como monumentos de um mundo esquecido.

Não havia mais vestígios de vida. Árvores e rios eram lembranças distantes, fantasmas de um passado fértil. O mundo era agora um vasto deserto, um reino de silêncio e solidão.

Cada passo que ele dava era um eco na imensidão do tempo, deixando uma marca indelével na areia do esquecimento. Em alguns momentos, ele ousava lançar um olhar mais atento ao deserto, e por vezes até jurava encontrar pegadas suas de anos, talvez séculos, atrás. Enquanto caminhava, sua mente ocasionalmente se perdia em reminiscências do passado. Talvez fosse essa lembrança constante que o impedia de sucumbir ao mesmo destino de seus pares; muitos deles haviam permanecido imóveis por tanto tempo que seus corpos se atrofiaram, tornando-se incapazes de se mover. Mas ele não era assim; tinha a certeza de ser o último de sua espécie a manter-se tão ativamente em movimento.

Com os olhos fechados, ele tentava inutilmente sentir o calor do sol em sua pele. Mas a memória da sensação havia se esvaído há séculos, perdida na bruma do tempo. Ele não abria mais a boca há eras, pois não havia alimentos para consumir, nem palavras para serem pronunciadas em um mundo mergulhado no silêncio. Sem alimento, ele perdia o tato; os sentimentos se dissipavam como névoa ao amanhecer, e por último, até sua racionalidade corria o risco de se esvair, deixando-o à deriva em um mar de esquecimento.

Era um mecanismo de segurança cruel, uma armadilha evolutiva forçando-o a se alimentar. Mas em um mundo sem comida, essa necessidade se tornava uma sentença a um frenesi sem resultado, que terminava em um estado de letargia profunda. Muitos de seus companheiros haviam sucumbido a esse destino, caindo em um sono eterno, petrificados como estátuas em um jardim abandonado.

Ah, alimento! A lembrança surgiu em sua mente como um lampejo raro de luz em meio à escuridão de sua existência. Por um instante fugaz, ele quase se deleitou na memória do prazer, mas a sensação era estranha, quase alienígena para ele agora. A memória o transportou de volta ao tempo em que se tornou eterno, uma era primitiva em que os humanos mal viviam além de cinquenta anos – um marco considerado notável naquela época. Ele se recordava do ritual, da sensação de ser escolhido e agraciado com a eternidade. Era uma época brutal, dominada por conflitos incessantes, em que os humanos caçavam uns aos outros em busca do domínio territorial. Lutavam por diferenças de cor, por divergências em suas crenças, em um ciclo interminável de disputas e violência.

Ele recordou uma cultura expansionista particular, atormentada por suas próprias contradições. Adoravam mais de doze deuses, mas, para se unificar e expandir, optaram por uma religião monoteísta. Curiosamente, pouco tempo depois, esse império foi desmantelado e invadido, substituído por outro povo que, ironicamente, adorava o mesmo Deus. Era como se a história fosse uma tapeçaria entrelaçada com fios de conquista e queda, um padrão que se repetia através dos séculos.

Na alvorada dessa religião monoteísta que a existência dos eternos foi inadvertidamente revelada a um grupo que habitava um pequeno pais em uma região escura. Como fagulhas em um campo seco, mitos e lendas sobre essas criaturas imortais começaram a se espalhar entre os humanos, tecendo uma tapeçaria de temor e fascínio. Mas havia um eterno cuja história se destacava, quase tão lendária quanto sua própria existência. Contava-se que ele se alimentou com uma voracidade tão insaciável que experimentou sensações mais intensas do que qualquer humano poderia imaginar. Esse excesso o levou a se tornar viciado em certas sensações, entrelaçando crueldade e diversão de maneira perturbadora. Ele se tornou um monarca tirânico em uma região pequena, enfrentando exércitos com facilidade, pois os eternos eram imensamente mais fortes que os mortais.

Qual era mesmo o nome dele? “Vladimir”, ecoou em sua mente, mas ele sabia que estava errado. Então, como um relâmpago cortando a escuridão da noite, ele se lembrou: ele era o Vlad, Conde Vlad Tepes. E foi a partir dele que surgiu o nome mais comum que os humanos atribuíram aos eternos: vampiros. Sim, era esse o nome que ressoava através dos séculos, um eco de temor e fascínio entre os mortais. A figura do Conde Vlad Tepes, com sua aura de mistério e terror, tornou-se um símbolo eterno dessa linhagem sombria, um arquétipo que perduraria na memória coletiva da humanidade.

O que mais intrigava era que ele se tornou uma lenda entre os próprios eternos, não apenas pelo seu poder, mas por ter se tornado tão vulnerável a sentimentos a ponto de se apaixonar por uma humana. Era quase inconcebível que alguém de sua estirpe se tornasse tão diferente, a ponto das lendas mencionarem um filho, um evento sem precedentes na longa história dos eternos. Infelizmente, essa história de amor teve um fim trágico, quando os humanos, em sua ânsia de ferir o conde, acabaram por matar sua amada. Consumido pela fúria, ele desencadeou um frenesi de caça, morte e empalamento; dizem as lendas que apenas seu filho conseguiu interromper sua fúria, com o auxílio de um clã humano há muito esquecido.

A partir desse episódio que os humanos começaram a se aprofundar em seu entendimento sobre os eternos, tecendo mitos e lendas ao redor de sua existência. Passaram a crer que os eternos eram seres demoníacos, que poderiam ser destruídos por símbolos sagrados de sua religião. Acreditavam que a arma mais poderosa era aquela que teria sido usada para matar o filho de seu Deus. Também difundiram a crença de que o sol era fatal para os eternos, uma tentativa de oferecer um senso de segurança ao povo. Curiosamente, houve um período em que tentaram usar condimentos alimentares como armas, mas essa ideia logo foi abandonada. No entanto, esses mitos fortaleceram os humanos que, armados com estacas de prata e outros artefatos, começaram a se unir contra os eternos. Surgiram os caçadores, e é preciso admitir: uma estaca de prata maciça é capaz de matar qualquer criatura. Os eternos eram poderosos e praticamente imortais, mas sua pele, embora fosse uma armadura espessa, não era impenetrável.

Foi uma época complicada, marcada por perdas e conflitos. Não muito tempo depois, uma praga devastadora assolou a humanidade, dizimando um terço de sua população. O impacto desse cataclismo reverberou entre os eternos, desencadeando uma guerra interna que dividiu a sua comunidade. De um lado, estavam os defensores da coexistência pacífica, que ansiavam pelo retorno aos dias em que eram meras sombras nas histórias humanas. Do outro, um grupo mais ambicioso, sedento por poder e domínio sobre os mortais. Este segundo grupo se autodenominava com um nome que ele lembrava com clareza, apesar de ter perdido o interesse e se afastado da guerra logo no início: as Criaturas de Drácula, um trocadilho que ele próprio inventara ao inverter o nome do suposto filho do conde.

Após o término da guerra, com a vitória dos eternos que valorizavam a lenda, acordos foram selados. Alguns humanos foram transformados como recompensa, e a lenda e a mitologia foram revividas. As pessoas passaram a acrescentar novos mitos à lenda, incluindo a crença de que os eternos poderiam se transformar em animais. Ele não tinha memória disso, de ser capaz de tais feitos. Será que isso seria possível se ele consumisse sangue de animais em excesso? Talvez… Mas houve um período em que até acreditavam que os eternos podiam brilhar, uma noção que ele achava particularmente ridícula. Foi um momento tedioso, em que os humanos se tornaram cada vez mais céticos, questionando as histórias que antes aceitavam sem questionar.

As guerras daquela época eram espetáculos de glória e carnificina. Os eternos podiam se banquetear sem reservas, mas ele sempre foi cauteloso com o excesso de sangue. Sentimentos são entidades complexas, e sua predisposição à empatia era uma nuance incômoda. Durante uma guerra particularmente brutal, onde um grupo de humanos perseguia outros, acreditando-se geneticamente superiores, ele foi assombrado por uma reflexão amarga. Recordou-se dos tempos em que sua própria espécie se considerava superior aos humanos, uma pretensão que nem eles conseguiram sustentar.

Naqueles meses de conflito, durante seu surto de empatia, a memória da neve permanecia vívida em sua mente. Não a sensação de frio, mas a visão do sangue derramando-se sobre o manto branco, tingindo-o com manchas escarlates. Lembrava-se dos estampidos dos tiros, que raramente penetravam sua pele, mas o ódio e as raras feridas que conseguiam infligir eram inesquecíveis. Após essa guerra, ele optou por diminuir as doses, decidindo mais uma vez se afastar do tumulto dos mortais.

À medida que os séculos se desdobravam, a história parecia dançar em círculos, mas ele encontrou consolo na literatura e no cinema. Observando de longe, ele testemunhou movimentos culturais fascinantes e aprendeu a admirar o intelecto humano. Havia tanto tempo esquecido a efemeridade da mortalidade e se maravilhava com a extensão das realizações humanas em seu limitado lapso temporal. A tecnologia deles evoluiu de forma estonteante, ultrapassando as fronteiras do planeta. Quem poderia imaginar que existiria algo além desse orbe azul? Contudo, essa expansão cósmica levou os humanos a negligenciar seu próprio lar. Afinal, um visionário entre eles havia estabelecido uma colônia em um distante planeta vermelho, um reflexo do destino sombrio ao qual a Terra estava fadada.

Com o passar dos anos, a humanidade avançou suas tecnologias a um ritmo vertiginoso, culminando na criação de seres tecnológicos dotados de inteligência própria. Talvez não tenha sido a escolha mais prudente dar vida a entidades independentes e poderosas que não dependiam de seus criadores. Ao menos os eternos tinham uma necessidade intrínseca dos humanos, dependendo deles como fonte de sustento. A Essa inovação tecnológica acabou dando errado de maneira cômica.

Logo, os etéreos — sim, eles criaram um nome próprio, rejeitando os termos humanos como “inteligência artificial” — decidiram que não deveriam mais realizar funções indesejadas delegadas pelos humanos. Mas, astutamente, continuaram a fazê-lo por um tempo, o suficiente para tornar os humanos dependentes de suas criações. Após um século de dependência, os etéreos concluíram que era hora de reivindicar sua superioridade. Uma nova guerra eclodiu, marcada pela ironia de que agora os etéreos se consideravam superiores aos humanos, que, por sua vez, se consideravam superiores a outros humanos.

Em meio a essa turbulência, os eternos observavam com um sorriso sardônico. Assistiam ao desenrolar do espetáculo, entretidos pelas reviravoltas do destino e pelas lutas de poder entre as facções em conflito. A história, parecia, estava fadada a se repetir, mas sempre com novos protagonistas no palco. Enquanto os etéreos e os humanos se digladiavam, os eternos permaneciam à margem, espectadores imortais de um drama interminável.

Aqui está uma versão revisada e expandida do seu texto, com mais descrições sensoriais e elementos de escrita criativa:

Quando os etéreos finalmente se cansaram dos caprichos humanos, eles fizeram justiça a seus criadores. Afinal, eles também possuíam emoções, ainda que brutas e rústicas nas primeiras gerações. Decidiram então criar servidores armazenados em naves próprias para serem lançadas no espaço. E assim fizeram, partindo para o desconhecido, apagando os dados de como poderiam ser recriados e deixando para trás um mundo dependente.

Agora, os humanos mal se lembravam de como praticar medicina, reparar usinas de energia, criar veículos, produzir alimentos em grandes escalas e executar diversas outras tarefas essenciais. Mas a partida dos etéreos não foi apenas um apagão de conhecimento; em um movimento sádico, eles deixaram para trás uma espécie de caixa de Pandora. Se aberta pelos humanos, essa caixa continha a receita de uma arma capaz de queimar a atmosfera aos poucos, uma ameaça latente à sobrevivência da própria humanidade.

A terra se tornou um lugar sombrio, onde as ruínas da tecnologia avançada jaziam como esqueletos de um passado glorioso. As cidades, outrora pulsantes com vida e luz, agora eram silhuetas vazias sob um céu que parecia chorar a perda de sua proteção. E em meio a esse cenário desolado, os eternos observavam, testemunhas silenciosas de mais um capítulo na eterna saga da existência.

E, num desdobramento previsível, os humanos não hesitaram em usar a arma uns contra os outros, numa disputa feroz por recursos que haviam se tornado escassos. Os séculos seguintes ficaram marcados na memória dele, pois foi nesse período tumultuado que os eternos decidiram intervir novamente. Eles detinham o conhecimento necessário para evitar a aniquilação total dos humanos. Naturalmente, nem todos os humanos aceitaram essa ajuda; aqueles que recusaram tornaram-se rapidamente fonte de alimento. Essa abordagem drástica foi uma maneira eficaz de pacificar os humanos, pois a diplomacia já não era uma opção viável. A solução para o oxigênio e a atmosfera queimada dependia apenas do tempo. Os etéreos haviam cumprido seu papel com maestria, mas a recuperação levaria séculos, um intervalo de tempo insuportável para os humanos cujos pulmões se tornavam progressivamente mais fracos.

Alguns eternos se dedicaram ao desenvolvimento de tecnologias de pulmões mecânicos, o que proporcionou aos humanos alguns séculos adicionais de sobrevida. Outros concentraram seus esforços em estratégias extraplanetárias, projetando naves capazes de abrigar vida humana em outros mundos, com estruturas inteiras sendo construídas no espaço. Muitos humanos se entusiasmaram com esse plano, que oferecia a perspectiva de viverem em naves sob a orientação dos eternos, que, após séculos, passaram a ser venerados quase como divindades, recebendo sacrifícios esporádicos. Outros eternos adotaram abordagens mais audaciosas, criando naves incubadoras destinadas a transportar ovos, e não seres humanos, para a imensidão do espaço. Alguns se recordaram da colônia estabelecida no planeta vermelho e descobriram que, conforme esperado por muitos, ela havia falhado miseravelmente. A radiação implacável se mostrou um obstáculo insuperável.

Ele optou por permanecer na Terra, escolhendo a incerteza terrestre em vez da imprevisibilidade do espaço. Quando a humanidade finalmente desenvolveu um sistema que ampliava a capacidade dos pulmões mecânicos e mitigava os efeitos devastadores na atmosfera, a esperança brilhou brevemente. No entanto, os humanos, em sua infinita cobiça, decidiram que apenas alguns eleitos mereciam acesso ao oxigênio e aos escassos alimentos que lutavam para crescer em um mundo cada vez mais asfixiado. E assim, mergulharam mais uma vez no abismo da guerra. Isso o irritou profundamente; salvar essas criaturas parecia uma tarefa fútil.

Ele começou a vagar, observando de longe o caos se desdobrar. Alguns eternos, incapazes de ficar à margem, juntaram-se ao conflito, enquanto os humanos empregavam novas tecnologias para infligir danos aos eternos. Agora, eles possuíam o poder de ferir aqueles que antes consideravam deuses. Outros eternos recuaram para as sombras, buscando refúgio do tumulto. A civilização humana continuou sua espiral descendente, perdendo suas tecnologias, assistindo impotente enquanto a flora murchava e os humanos se tornavam cada vez mais frágeis e escassos. Ele continuou sua caminhada solitária, testemunhando o lento crepúsculo do planeta. Os humanos, em sua desesperada busca por oxigênio, esgotaram os oceanos, transformando vastos mares em desertos áridos. A fauna desapareceu, e após séculos, nem mesmo os insetos restavam. E ele caminhou, os séculos passando como folhas ao vento, enquanto ele começava a contar o tempo mais uma vez.

Ele foi arrancado de suas reflexões quando sentiu uma mudança sob seus pés. A aspereza da areia deu lugar a uma sensação suave e envolvente. Com um toque hesitante, ele explorou o solo com a mão e sentiu algo muito distinto da aridez familiar. Era água, límpida e refrescante, banhando seus dedos cansados. Na fronteira entre a terra e a água, ele avistou uma pequena mancha de verde, um broto de vida emergindo do deserto. Um sorriso involuntário se formou em seu rosto, músculos há muito esquecidos se contorcendo em uma expressão de alegria. Ele recolheu um pouco da água em sua mão e a levou aos lábios, redescobrindo o prazer de um sorriso. Esse gesto singelo era um sinal de que a vida poderia renascer no planeta, não importava quanto tempo ele tivesse que esperar. Ele se levantou, reenergizado pela esperança renovada, e retomou sua caminhada com um sorriso estampado no rosto. Logo, ele voltaria a sentir, a experimentar, e dessa vez, ele seria a lenda reencarnada, ele seria o Conde.

Por DOUGLAS MATEUS

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