Gostaria de desdobrar-me da condição de passageiro, mas a desigualdade social me convém a isso.
Mais um dia de guerra, junto ao canto do galo, acordo cedo na força da fé. Sim, a fé de que os humilhados serão exaltados. Na vida é preciso ralar, correr atrás, pois nada cai do céu. Às vezes, é preciso dar a cara a tapa só pra provar o quanto somos gladiadores. Tudo depende da força de vontade e da esperança de dias melhores.
Coletivamente me encontro aqui à espera de um milagre ou qualquer transporte que seja compatível com a minha paciência. Eis que vem um móbile, mesmo devagar já é alguma coisa. Subo devagar as escadinhas já que a minha altura não colabora. Agora vejamos… por que causa, motivo, razão ou circunstância de construí-la numa altura elevada? E os idosos? E os passageiros com deficiência física? E as gestantes? Meu pai eterno…assim o bebê vai nascer antes do tempo.
Enfim… me ponho de pé segurando as barras de ferro já que conseguir um assento livre é complicado e, lógico, evitar voar longe no para-brisas ou cair em cima de um fulaninho mal humorado. Sigo em frente à minha rotatória com meus fones de ouvido inseparáveis. Ah meus amados fones…o que seria da minha vida sem suas músicas para relaxar o estresse?
A real é que andar de ônibus é uma arte. A arte de lidar com pessoas heterogêneas. O motorista, com sua posição assentada de sempre, conhece todos os arredores da cidade, atalhos inusitados e ruas estreitas que fazem a gente ficar no estilo ragatanga; sobe e desce. Existem aqueles da vibe boa, que tem a gentileza de esperar o passageiro alcançar ônibus e mandá-los subir calmamente, ignorando totalmente se o veículo de trás está buzinando e xingando de todo nome possível.
Por outro lado, existem aqueles condutores de pavio curto que não quer saber se você está atrasado (alguns passam direto) ou adquiriu alguma técnica de equilíbrio. Segundo ele, dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço e seguir viagem.
Os dorminhocos de busão são figuras presentes neste cenário. É interessante que eles sabem exatamente a hora de descer sem que ninguém os chame. Se fosse comigo, iria rodar a Teresina toda sem prazo de descida ou nem dormiria, já que meu nível de sono é leve e, de preferência, no silêncio.
Sem a música, a vida seria um erro. De fato, essa frase faz todo sentido quando se trata de ônibus. Uma boa música sempre acalma os ânimos e faz a condução se tornar mais prazerosa. Mas os Mestres de Cerimônias que colocam seu equipamento nas alturas, praticamente obrigam a todos a sua volta a partilharem de seu gosto musical e esquecem do respeito ao próximo. Inusitadamente parecem ensaiar uma coreografia no meio do povo, sem se importar em dar aquela pisada mortal no pé de alguém.
O Clube do Fofocalizando exerce seu papel com mérito. São histórias peculiares que fazem o cidadão perder a parada só para ouvir o final da fofoca. As tiazinhas do fundão se encarregam de soltar o badalo e não perdoa nem o cobrador que tem visto sua reputação por água abaixo. Nada contra as conversas alheias, mas tem hora que dá vontade de colocar um esparadrapo na boca de certas tagarelas de plantão.
Certamente alguém já deve ter se deparado com o pessoal da instituição Manassés, que tem o objetivo de reabilitar dependentes químicos. Eles geralmente pedem um pouquinho da atenção dos passageiros para anunciar seu trabalho social e saem distribuindo os saquinhos com canetas, a fim de arrecadar fundos. Infelizmente nem todo mundo tem empatia pelo próximo. Um exemplo disso são os assentos preferenciais. É revoltante pessoas com mais de 65 anos, tendo que permanecer em pé, enquanto o jovem saudável fica sentadinho fazendo vista grossa.
As mamães com criança de colo, cheias de sacolas e vendedor de bala ofertando o melhor preço. Os religiosos com suas pregações diária definindo quem vai para o céu e quem vai para o inferno. Os estudantes com suas mochilinhas nas costas em busca de um rumo na vida e ser orgulho da família.
Os pedintes com seu discurso pronto, que faz a gente duvidar se estão falando a verdade ou apenas para adquirir droga na boca de fumo mais próxima. Os leitores em sua concentração ampla para saber o final da história, sem nem se preocupar em deslocar a retina. O elevador de cadeirante não funciona, quando não consegue pegar o ônibus, a solução é esperar o seguinte passar ou se deslocar por 3 km para pegar outra linha. E os dias de chuva? e o sol quente? E as tarifas absurdas do Uber?
Andar de ônibus é uma verdadeira interação social. É uma oportunidade de conhecer pessoas novas, mesmo que você nunca mais as veja. Traçar um tour pela cidade, tomando conhecimentos de lugares até então nunca vistos. Testemunhar diversas histórias que nunca nem imaginou que ouviria. Esperar sozinho ou acompanhado nas paradas, correndo o risco de ser assaltado sob a luz do dia ou lugar da noite. Conferindo de 5 em 5 minutos o relógio como se isso agilizasse os transportes ou encurtasse o nível de irritação por chegar atrasado em seu destino.
Sentir todas as emoções e situações possíveis. Fome, sono, ódio, preguiça, vômito (existem aquelas pessoas, que assim como eu, sofre com cinetose ou “enjoo de movimento”), gastar aquelas moedinhas do sagrado porquinho para completar o gasto da passagem. Há também aquele momento doloroso quando o motorista passa por cima de alguma lombada e o viajante falta quebrar a coluna ao meio. Pessoal do fundão entende disso muito bem.
Diante disso, reafirmo com razão. Andar de ônibus é uma arte. Na alegria e na tristeza, na saúde e no aperto. Até que a parada nos separe.
Por SUELE GOMES