Esse mês faz um ano que eu ganhei um céu.
Um ano que eu passei a olhar para cima com uma sensação absoluta de propriedade. Difícil de explicar, mas explico.
O céu é um teto planetário misterioso que está lá todos os dias, para todos nós, desde o dia que nascemos até o dia que partimos. E desde pequenininha que eu tenho essa relação com ele de espanto e paixão, porque nunca consegui me acostumar com o deslumbramento das nuvens e das estrelas. Perdi a conta das horas que ganhei na vida deitada na grama olhando para essa coisa azul que ninguém explica.
Mas no ano passado eu tava em busca de uma nova casa que pudesse abrigar as meninas em quartos separados e qual não foi a minha surpresa quando descobri que tinha uma cobertura para alugar no meu condomínio, pelo preço de um apartamento normal, porque o terraço não tinha telhado, nem churrasqueira nem piscina. Só um céu. Mas as pessoas não estavam interessadas nisso.
Pois bem. Aluguei a cobertura e na primeira noite que dormi na casa nova, saí sozinha no terraço e fui invadida por um sentimento avassalador. Era uma noite estrelada, limpa, fresca. Silenciosa. Já era tarde e quase todas as luzes dos prédios vizinhos estavam desligadas. Eu me deitei no chão de braços abertos e bebi daquela imensidão como se estivesse vendo o céu pela primeira vez. Uma epifania pela qual nunca tinha passado. Como alguns poucos momentos que a gente passa e entende uma centelha da existência.
Enfim, me sentindo profundamente abençoada, segui meu ano colecionando céus, tempestades, pores e nasceres de sol, uns mais lindos que outros. Estrelas-cadentes, luas cheias e minguantes, arco-íris, gaivotas, balões, aviões. Meu céu tinha se transformado num divã: o melhor lugar para curar minhas angústias só pela simples contemplação do infinito.
E foi assim, observando essa imensidão, que um dia, eu descobri o menino sem estrelas.
Ele mora numa janela em frente ao meu terraço e quase todas as vezes que eu o busco no olhar, ele está lá, no mesmo lugar, no mesmo quarto, na mesma cadeira, olhando a mesma tela grande que reproduz imagens de um laptop, que reproduz imagens de uma guerra, onde ele está sempre atirando em alguém.
É desesperador. Meu coração tem que se contraído ao observá-lo na mesma proporção que se expande ao olhar para o céu e eu não sei o que fazer com isso. Já tentei várias formas de me desapegar dessa história, mas a cada dia, me sinto mais envolvida na trama de observá-lo, assim como fazia o personagem de James Stewart em “A Janela Indiscreta” de Alfred Hitchcock.
Queria me desapegar do julgamento de vê-lo ali tão preso, mas não consigo. Queria tentar entender o que leva alguém tão jovem a encarcerar-se dessa forma, mas não consigo. Queria ter a coragem de chamá-lo para a vida, mesmo sabendo que não tenho direito de achar que o que vive não é vida, mas não consigo.
Os sóis nascem, os dias correm, as luas chegam, as noites caem. E o menino sem estrelas está sempre ali. E não há nada que eu possa fazer por ele. A não ser sonhar com o dia que lhe mostraria o céu e a paleta de cores que pode surgir num entardecer. Ah, seu eu pudesse, mostraria ao menino os vários tipos de vento que o vento sabe ventar. E lhe mostraria a dança das folhas, a forma mágica das nuvens, o anúncio de calor que trazem as cigarras, a liberdade que nos ensinam os passarinhos. Esperaria ao seu lado o anoitecer e lhe ensinaria que a primeira estrela que nasce no céu não é uma estrela e sim um planeta. E que todas as mais lindas constelações têm nomes próprios e que surgiram para ajudar os nossos ancestrais a compreenderem os ciclos da terra e do tempo.
Eu sei que o menino nem imagina que eu existo. Mas se eu tivesse uma chance, uma chance apenas, diria a ele que a vida é um sopro e que o tempo passa depressa e que se ele não se atentar, vai perder a chance de viver, tudo que a vida tinha reservado para lhe dar.
A começar pelo céu.
Por TATIANA MONTEIRO