CRÔNICAS – Botões fora do lugar por Érica Favarin

CRÔNICAS – Botões fora do lugar por Érica Favarin

O garoto corre apressado. Olha para os lados. De uniforme escolar, alguém vai reconhecê-lo? Isso não importa agora. Pelo menos, a casa é perto de onde estuda.

Mais algumas passadas largas e ele chega na residência. Procura o controle na mochila. Revira bolsa, bolsinho, penal. Nada do objeto remoto. Ele pula o muro para não acordar o pai que chegou tarde do serviço noturno.

Na ponta dos pés, reza baixinho para não ter esquecido também as chaves da porta. Revira caderno, papel, prova, pasta. Lá estão elas, no fundo da mochila. Ele vira para o céu e agradece a Deus baixinho.

Com gestos caricatos de ninja, ele percorre a sala de estar conectada à cozinha. Atravessa o corredor, vê a porta entreaberta do quarto do pai. O homem dorme tão profundamente que até ronca. Ele ainda está com as roupas de segurança.

Barra aparentemente limpa, o garoto vai até o quarto compartilhado com o irmão mais novo. Lá, ele tateia o alto do guarda-roupa e encontra a caixa de costura que pegou emprestado da vizinha. Além do objeto quadrado, ele pega uma camisa de botões que está com os dois abotoadores do centro ausentes. A roupa é menor que seu tamanho.

Volta para sala de estar com passos de gato ligeiro. Abre a caixa meio indelicado. Por sorte, o barulho não foi tão alto. Pega a agulha e a linha. Tenta encaixar uma vez. Vai para o lado. Mais uma. Foi para o outro lado. Será que ele precisava de óculos? Estava perto de ficar irritado. A linha finalmente entra. Agora, era lembrar do passo a passo que a velha ensinou ontem à noite.

As mãos do rapaz são grossas e rígidas. A imprecisão e a falta de cuidado formam pontos desajeitados. Entra agulha. Sai agulha. Ele termina o remendo depois de uns quarenta e cinco minutos e várias tentativas falhas de colocar os botões do jeito em que estavam originalmente.

Mal termina de admirar sua restauração, o portão eletrônico abre. Era o irmão mais novo voltando do mercado. Reconhecia os passos pequenos e curtos do tênis de pano gasto. Tratou longo de dobrar a roupa para não a amassar.

O menino abriu a porta com pressa. A batida interrompe o ronco do pai. O garoto mais velho revira os olhos e encena uma cara de bravo para o menor. A criança pede desculpas e pergunta sobre a camisa de botões. Passos pesados são ouvidos no corredor. O irmão mais velho esconde-se atrás da lateral do sofá e o mais novo vai até a bancada da cozinha organizar as poucas sacolas que trazia.

O homem coça a cabeça e pergunta sobre o barulho. A criança conta que bateu a porta, pois estava empolgada. O pai estranha. O mais velho está escondido com a respiração presa e mão direita no peito. A outra segura a camisa de botões. Rapidamente, o filho menor muda o assunto e pergunta o que o pai quer para o almoço. Ele diz que um arroz com frango já serve. Antes de voltar para o quarto, pede também por batatas fritas. Ambos os irmãos suspiram de alívio.

O garoto mais velho sai do esconderijo e entrega a roupa para o menor. Ele olha o relógio. São 11:30h. A aula já havia acabado e ele demorava uns dez minutos para chegar em casa. Antes de sair pela porta para simular sua chegada da escola, disse ao mais novo:

“Vou na casa do Júlio pegar o jogo que ele disse que ia me emprestar ontem. Daqui a pouco, eu volto. Agora, toma cuidado com essa camisa, foi difícil costurar essa porra. E não esquece de fazer mais batata frita pra mim. Coloca ketchup por cima depois de separar as do pai.”

O menor assente e o mais velho sai de casa, pula o muro e corre tranquilo. Daria tempo de fazer tudo e fingir que nada de mais havia acontecido. Só restava saber se o encontro do irmão mais novo com a menina que gostava, marcado para o início da tarde, daria certo.

Moças gostam de rapazes bem-vestidos, não é mesmo?

Por ÉRICA FAVARIN

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