CRÔNICAS – Dever para o lar por Andréa Carvalho

CRÔNICAS – Dever para o lar por Andréa Carvalho

           A relação íntima que existe entre moradia e educação deveria estar bem clara, não só por parte daqueles que trabalham na área do magistério como principalmente por aqueles que têm o poder de administrar as questões socioeducacionais. Sendo a moradia um direito social garantido pela Constituição Brasileira, penso que somente a partir dela é que outros direitos podem ser usufruídos, tais como a saúde, o trabalho, o lazer e a educação, pois o lar constitui a base de uma vida digna e equilibrada para qualquer pessoa.

            Muito repreendi meus alunos com a cobrança pelo dever de casa feito até conhecer de perto o ambiente em que eles viviam. Quando se retorna da escola para uma habitação em que só há um cômodo, geralmente para abrigar, no mínimo, cinco pessoas e que funciona como quarto-sala-cozinha. Quando não há como se ter privacidade, pois o espaço precisa guardar tudo de todos os moradores. Aí, vem à tona a distância que há entre a idealização que eu tinha de um lar para a dura realidade de se viver num local que nada mais é do que um abrigo contra os perigos da noite, a força da chuva ou o rigor do frio. Não há nada parecido com um lugar onde o aluno tem seus objetos pessoais organizados e uma mesa para se sentar e fazer o dever de casa, não há estrutura, conforto, bem-estar e, imagino que muito menos, prazer em chegar a esse lar.

            A impossibilidade de se ter espaço para um momento de estudo em casa é uma consequência ínfima perto do que essa condição de vida pode causar. Muitas crianças são colocadas desde cedo em contato com a intimidade sexual dos mais velhos, o que torna aquilo que presenciam um ato banal, faz perder a inocência e acaba colaborando para transformar menores de quinze anos em papais e mamães precocemente. A ausência do aconchego de um lar também significa mais tempo fora dele. A rua se torna mais atraente do que a clausura de uma espécie de cela aberta agravada pelas altas temperaturas da nossa região. E quanto mais tempo fora de casa maior a exposição aos perigos e à violência de uma grande cidade.

            Em certa ocasião, precisei ir à casa de uma aluna ajudá-la a transportar as doações arrecadadas por ela e seus colegas para a festa junina da escola. A habitação da família se resumia a um quarto de cerca de 15m² e era a moradia de três adultos e três crianças. Quando ela pediu que a esperássemos colocar o tênis escolar, percebi que numa sacola, num canto apertado por outros objetos, ficavam guardados todos os calçados de toda a família, tudo junto e misturado, numa tentativa de ordenar, de alguma maneira, o caos inevitável que a falta de espaço provoca. Não havia camas à noite; certamente, o pouco espaço de chão ficaria coberto por finos colchonetes tipo de acampamento que eu pude ver esticados atrás da porta. Não havia mesa, que mais do que um objeto para apoiar a refeição é também suporte para o momento em que a família se integra, interage, comunica-se. Um guarda-roupas e um armário de cozinha dividiam a mesma parede; na outra, o sofá em frente a um rack com TV e aparelho de som próximos ao outro lado onde ficavam o fogão, a geladeira e alguns eletrodomésticos numa prateleira na parede sem pintura. Do lado de fora, centenas de habitações similares e milhares de tarefas de casa por fazer esperando, dentro das mochilas, o próximo dia de aula.

Por ANDRÉA CARVALHO

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