CRÔNICAS – Sinestesias pretéritas por Neri Luiz Cappellari

CRÔNICAS – Sinestesias pretéritas por Neri Luiz Cappellari

Ontem estava andando pela calçada. Junto ao meio fio, vários pés de árvores formavam uma carreira ao longo do meu percurso. De repente, eis que surge um pequeno pé de pitanga que, para minha surpresa, estava carregado de frutas. Não tive dúvidas. Peguei uma pitanga e a comi. Imediatamente, o gosto daquela fruta me levou ao passado.

O seu sabor aguçou a minha memória, e eu, em questão de segundos, voltei aos meus nove anos. Um campo todo verde com diversas árvores frutíferas formou-se a minha frente. Vários pés de pitangueiras, guabirobas, jabuticabas, figos, romãs aguçavam o meu paladar. Captei o cheiro de mato, o cantar dos quero-quero, o barulho do vento, o farfalhar das folhas. Até o pé escondido de guaimbê ganhava brilho em meus pensamentos. Aquele mesmo córrego onde tantas vezes me banhei, pesquei e bebi daquela água, até me fartar, estava ali borbulhando em meus pensamentos. O pequeno riacho de águas claras puras e límpidas serpenteava aquela paisagem verde a perder de vista.

É incrível como um olhar diferente sobre as coisas, em princípio, tão normais no dia a dia, pode nos abrir as janelas do passado.

Outro dia, estava olhando umas fotos antigas de parentes, amigos, alguns inclusive que já partiram. Ao ver aquelas imagens, meus pensamentos vasculhavam as lembranças de anos há muito tempo idos – tempos bons aqueles! São lembranças que trazem saudades e uma vontade muito grande de reviver cada momento mais uma vez.

Fechava os olhos e via uma casa familiar, tão antiga quanto o tempo que minha memória permitia alcançar. Não era muito grande nem bonita, porém suas paredes contavam histórias que me faziam divagar. Eram recordações daquelas conversas antigas, ao cair da noite, sem internet, sem televisão, sem celular.  O assunto era sobre o trabalho daquela gente simples da roça: o de alimentar as galinhas, o gado, os porcos antes do cair da tarde. A lida na enxada do amanhecer ao anoitecer. Arar a terra ao sol escaldante, com os corpos suados, das tardes sem fim. Depois deviam plantar as sementes todas enfileiradas, a perder de vista, naqueles campos dourados ao por do sol.  As melhores épocas para o plantio e a colheita eram assuntos obrigatórios em conversas necessárias que, às vezes, entravam na noite.

Lembro-me de que meu avô tinha uma atração especial pelos vinhedos. Sabia todos os detalhes sobre a época certa para o seu cultivo. Dizia que os cachos das uvas eram que nem o cabelo de uma linda mulher e somente deveriam ser tocados com carinho para exalarem o frescor das manhãs. Realmente o seu vinho era o melhor da região, e ele se orgulhava desse fato – eu também.  Eu adorava descer ao porão – até hoje vejo as pipas dispostas lado a lado – e ainda sinto o cheiro de madeira antiga impregnada no ar. Ele mostrava aquele líquido bordô com orgulho aos seus vizinhos e aos amigos. Era o seu recanto pessoal para degustar essa bebida, após o almoço, antes de reiniciar a sua dura lida diária como homem do campo.

Enganam-se os cientistas que acham ser difícil ou impossível voltar ao passado.  Basta saborear uma pitanga ou olhar algumas fotos antigas para retornarmos a nossa infância.  Depois, é só soltar as amarras e deixar-se levar pelas asas da memória. Assim, as frestas do tempo se abrirão para nos mostrar que até o impossível pode ser tocado. Então os anos – há muito tempo idos – abrirão suas janelas para o brilho do nosso olhar.

Por NERI LUIZ CAPPELLARI

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