A coluna conta com crônicas escritas pela colunista e por convidados e/ou textos de escritores já consagrados, abordando temas atuais, do nosso cotidiano, e que nos façam refletir.
Nesta edição da revista, o tema abordado é A DOR DA MORTE.
A DOR DA MORTE
Fonte: Arquivo pessoal
Querido primo,
Ainda hoje lembro daquela segunda-feira de manhã, eu tinha acabado de chegar ao trabalho, quando vi meu celular tocar. Era meu pai ligando, algo bastante incomum nesse horário e em dias de semana, o que já me deixou preocupada.
Ao atender a ligação, recebi a notícia que jamais imaginei receber… A única coisa que consegui dizer foi:
– Como assim? Meu primo? Mas como assim?
Parecia mentira o que meu pai estava me contando ao telefone. Você não estava doente, ainda era muito jovem, 34 anos recém completados, pai de uma filha linda, trabalhador… Da última vez que nos vimos, você parecia feliz, do mesmo jeito que sempre me lembro: de bem com a vida! Você estava com planos de vir para o casamento do meu irmão e finalmente conhecer Brasília. Estávamos todos muito animados com a possibilidade de recebê-lo aqui. Que grande choque foi saber que você tirou sua própria vida.
Como você bem sabe, por causa do tamanho enorme da nossa família, desde criança já estava habituada a situações de doenças e morte na família. Na maioria das vezes, ou meu pai ou minha mãe saíam de Brasília e iam para o local em que seria realizado o velório e o enterro.
Mas dessa vez foi tudo diferente: sua família e seus amigos, ninguém imaginava ou esperava que isso fosse acontecer. Fomos pegos totalmente de surpresa. Meu pai havia feito uma cirurgia na semana anterior, impossível ele pegar um voo para João Pessoa e em seguida um transporte para Patos. Meu irmão estava viajando com a noiva, seria inviável para ele ir também.
Já me chamaram algumas vezes de mulher de gelo, acredito que por conseguir encarar situações inesperadas com tranquilidade e sem me desesperar, por conseguir agir e pensar em como contornar ou resolver a situação apesar de não ser uma situação cotidiana. E, fazendo jus ao meu adjetivo de mulher de gelo, em um período de 3 horas consegui:
8h30: receber a notícia e pensar no que fazer.
9h: conversar com minha chefe para pedir que ela me dispensasse por uma semana (com os dias sendo descontados das minhas férias que já estavam agendadas para o mês seguinte) e comprar a passagem de avião para João Pessoa.
9h30: ir para casa (distância de 30 minutos do trabalho) e fazer minha mala.
10h50: passar na casa dos meus pais para me despedir dos meus pais antes de viajar (distância de 20 minutos de casa).
11h30: chegar no aeroporto e pegar o voo que estava marcado para 13h aproximadamente.
Não lembro o horário exato que cheguei em João Pessoa, mas meu pai já havia conseguido agendar uma vaga em uma van que iria de João Pessoa para Patos no mesmo dia. Lembro de ter esperado pouco tempo no aeroporto e logo já partimos para Patos. Foi nesse trajeto que caiu minha ficha: meu primo, de idade tão próxima da minha, alguém tão querido por mim e pela minha família, havia partido. E foi nesse momento, ao realmente entender que isso estava mesmo acontecendo, que eu estava indo para Patos me despedir de você, que eu chorei… Não tínhamos um contato muito próximo devido à distância física que nos separava, mas sempre comentava com meu ex-marido sobre você, minha irmã sempre falava para o marido dela sobre você, sobre como você era uma pessoa especial.
Pode parecer clichê, mas depois que você se foi, de vez em quando penso no que poderia ter feito, no que poderia ter falado, que deveria ter demonstrado o carinho que sentia por você. Mas agora é tarde, não há mais nada a se fazer.
Você se foi e levou com você os motivos da sua partida. Não deixou uma carta, uma mensagem, nada… Jamais saberemos com certeza o que te levou a tomar esse caminho sem volta, podemos apenas imaginar o que pode ter acontecido. Acho que isso é o que mais dói em todos que te querem bem, não saber o que te levou a tomar essa decisão e a sensação de impotência por não termos conseguido te impedir, a sensação de ter deixado você na mão e de não ter percebido as dificuldades pelas quais você estava passando.
E, como sempre, a vida segue. Desde sua partida, muitas coisas já aconteceram, boas e más. Nossa família teve outras mortes dolorosas, a pandemia nos atingiu com força. Foram três tios e duas tias que pereceram devido ao Covid, mas me perdoe se estou sendo insensível, nenhuma dessas perdas doeu mais do que a sua. Eles não tiveram escolha, foram atingidos por esse vírus que fez inúmeras vítimas. Mas você não, você ainda era jovem e saudável, você apenas escolheu não estar mais entre nós…
Às vezes me pergunto: o que você estava sentindo? Que dor ou desespero tão grandes te deram a força e a coragem para fazer o que você fez? Gostaria de ter sabido e ter tido a chance de aliviar sua dor para que você pudesse ainda estar entre nós, principalmente vendo sua filha crescer.
Mas não serei hipócrita, se houvesse uma segunda chance, sinceramente não sei se seria diferente. A realidade é que, na correria do dia a dia, ficamos tão imersos em nosso próprio mundo, em nossos afazeres e nossas vontades, que muitas vezes não paramos para prestar atenção ao próximo, à nossa família, aos nossos amigos como nós deveríamos fazer. Somos tomados por nossas preocupações e nossos desejos e nem sempre tiramos um tempo para olhar em volta e observar como nossos entes queridos estão.
Também sei que na maioria das vezes não temos coragem de admitir que precisamos de ajuda. Eu mesma passei por isso recentemente e como foi difícil admitir para mim mesma que não estava dando conta, que precisava de uma pausa. Muitas vezes o orgulho e a vergonha nos impede de dar a chance de alguém fazer algo por nós. Então, fique tranquilo, não te julgo pelo o que você fez, sei que para ter feito isso, você sentiu que não havia outra saída. Mas gostaria que você soubesse que sempre há uma saída, que às vezes sozinhos não conseguimos encontrar, mas com a ajuda de quem nos quer bem, fica bem mais fácil.
Por você, meu primo, não consigo fazer mais nada, a não ser rezar para que você esteja bem e em paz onde quer que esteja. Mas estou escrevendo esse texto para você para que outras pessoas que estejam pensando em tirar a própria vida saibam que há uma saída, que há pessoas dispostas a ajudá-los a achar uma alternativa, um novo caminho. E se for muito difícil pedir ajuda para alguém conhecido, há inúmeras outras formas de pedir ajuda:
- Psicólogos;
- Psiquiatras;
- Igrejas;
- CVV – Centro de Valorização da Vida.
Não tive a oportunidade de te dizer, mas espero que outras pessoas possam ler: Não desista da vida, peça ajuda! A vida é seu bem mais precioso!
Fonte: Arquivo pessoal
A morte não leva tudo.
Há algo que não daremos. Uma manta com o cheiro da pessoa, uma carta com a caligrafia, uma fotografia com a data rascunhada atrás. Pode ser um pijama ou um casaco. Um travesseiro ou um relógio. Pode ser uma xícara lascada ou um copinho de cachaça. Um pertence sublime ou banal.
Não são pagas todas as prestações do fim – uma se encontrará pendente, em aberto. Um pouquinho da presença restará conosco.
Tanto faz que soe como possessividade, apego, resistência em se despedir.
Nem todo luto precisa ser completo. Nem toda doação precisa ser integral.
A saudade é tátil, depende de um objeto para reconstituir a memória. Temos que tocar em uma superfície já que não podemos abraçar a pele e fungar o cangote como antes.
Escolhemos um talismã para dizer a nós mesmos que ficamos com um pedaço, uma parte viva de quem partiu. Para lutar contra a extinção sumária de uma vida, contra o desaparecimento ingrato de uma hora para outra.
É uma lembrança para nos inspirar a viver, para um dia – se Deus quiser – contar com condições de agradecer o tempo lado a lado, manuseando novamente as alegrias com leveza, sem culpa, sem medo do futuro.
Que os terapeutas nos perdoem, mas roubamos, descaradamente, os bolsos e gavetas de nossos mortos para manter um fragmento de sua existência por perto.
Por Fabrício Carpinejar (Depois é nunca [recurso eletrônico] / Carpinejar. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.)
Onde você estava quando morreu alguém importante da sua estima? Um pai, ou uma mãe, ou um irmão, ou um amigo, ou um amor?
É bem possível lembrar exatamente o que estava fazendo, o que vestia, a hora quebrada do desconsolo.
O momento em que recebemos uma notícia grave nunca é esquecido. Gravamos com a adrenalina do medo. É uma imagem mental que será repetida exaustivamente ao longo da culpa de não estar presente e não poder fazer nada.
Até porque sempre somos surpreendidos. Você atende ao telefone pensando que é uma banalidade e é uma urgência. Jurava que se tratava apenas de uma conversa amistosa quando apareceu o nome do parente no visor do celular. Por pouco, não atenderia. Inclusive se recorda disso, de que fez pouco caso.
Você não espera o pior – não tem tempo para se preparar e raciocinar por uma melhor resposta.
Acaba engolido pelo vácuo, pela tartamudez. Sua reação é sair correndo e abandonar a ligação pela metade. Pretende fazer algo para intervir no destino, mesmo quando já está consumado. Deseja se despedir ainda que seja tarde.
Surge um esforço para recuperar o encontro recente e reprisar quando foi que se viram pela última vez, e se havia algum sinal profético de adeus. Tenta achar uma coerência no roteiro absurdo do destino, localizar uma desatenção de sua parte que explique tudo.
Jamais apagaremos a força de um comunicado de pesar que revela todas as nossas fraquezas. Pois é um trote que mudará a nossa vida, é um engano que despertará as memórias mais secretas.
Onde você estava quando o seu afeto morreu?
Certamente fora de si.
Por Fabrício Carpinejar (Depois é nunca [recurso eletrônico] / Carpinejar. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.)
Por CHRISTIANE MORAES