CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – Meu maior fetiche

CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – Meu maior fetiche

 Nunca falei sobre isso com ninguém, nem com minha analista, mas acho que chegou hora. Eu tenho um fetiche sério e que sei que foi iniciado ainda em minha tenra infância. Algo que sempre foi tabu até mesmo entre as crianças se não me falha a memória. Em casa ninguém tocava no assunto, na escola muito menos. Acho que as professoras temiam falar sobre para não incitar o desejo nas crianças.

 O que na certa não adiantava muito pois recordo que entre as meninas e meninos mais atiradinhos o assunto já circulava. No início da adolescência isso aflorava cada vez mais, sobretudo quando voltávamos para casa de Rio card. Dentro do ônibus essa curiosidade ficava à flor da pele. Como voltávamos para casa quase na hora do almoço o Rio Ita naquela época estava quase vazio, minha turma quase toda pegava para voltar para casa.

 Independente se fosse menino ou se fosse menina, era só entrar no ônibus. Todos os olhos presentes se intercruzavam e a fantasia rolava solta. Isso queimava dentro de nós, um sonho inalcançável. Puxar aquela droga de alavanca vermelha.

 Tudo bem, trata-se de um “mecanismo de saída de emergência do ônibus”, mas e daí? De que adianta colocar uma alavanca – ainda mais vermelha – dentro do ônibus se a criança não pode puxar? Ninguém leva em conta nossa hipertonia, a explosão psicomotora e tudo isso somado a uma criatividade espetacular que toda criança possui?

 Defendo um projeto de lei que pelo um dia no ano seja instaurado um feriado nacional. “O feriado nacional das alavancas vermelhas.” Onde durante esse dia, somente crianças poderão pegar ônibus e mais alavancas vermelhas fossem espalhadas pelas janelas. Tudo isso para que toda criança com menos de 12 anos tenha a oportunidade de entrar no ônibus e com ele em movimento – esse detalhe é importante – ter a oportunidade de puxar aquela sedutora alavanca vermelha. A questão proposta pode parecer simples, mas indubitavelmente não é.

 – O que acontece se puxarmos aquela alavanca?

 – A janela cai? ok!

 – Se ela cai, como ela cai?

 – Fica pendurada? Se espatifa no chão?

 Essas e outras centenas de perguntas circulam pelo mundo espetacular-imaginário de toda criança. Elas se deslocam, intercruzam-se, associam-se, articulam-se, ressignificam-se, ramificam-se e dão luz a outras novas perguntas toda vez que entramos num ônibus novo. Até porque em ônibus de linhas diferentes, tais alavancas se encontram dispostas no ônibus em diferentes lugares, o que fala da subjetividade das empresas e traz, por conseguinte, novos questionamentos.

 Eu mesmo e meus colegas de classe fazíamos vários planos para acabar com esse mistério. Recordo que por vezes chegamos ao ponto de quase fazer uma besteira. A gente contava quantos segundos o ônibus ficava parado quando saltava uma pessoa e quantos segundos depois que essa pessoa saltava o ônibus levava para fechar as portas.

 Era um trabalho de equipe, um ficava de olho em quem dava o sinal para o ônibus parar e averiguar qual seria o melhor ponto, dois ficavam a postos para puxar as alavancas vermelhas, e um outro pronto para começar a gravar em vídeo com o Nokia da cobrinha. Isso tudo quando o observador desse o sinal. A gravação serviria para mostrarmos para as demais crianças e amenizar as angústias. O plano era perfeito. Todavia nunca colocamos em ação, sempre ficávamos à mercê da falta de meio por cento para alcançar a coragem necessária e ou havia alguém no ônibus que pudesse nos incriminar.

 Não podemos jogar as próximas gerações nesse limbo existencial das alavancas vermelhas e fazer com que eles sofram da mesma forma como que eu e toda minha geração sofreu e cresceu com esse desejo recalcado. As autoridades precisam resolver esse problema de uma vez por todas!

Por MATHEUS FERNANDO

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