Meu irmão mais velho é um desenhista. Um daqueles gênios autodidatas que vive no anonimato. Ele tinha uma caixa de papelão estufada de revistas que guardava acima do beliche, na cumeeira da casa. Essa segurança toda era para evitar que o caçula, ou seja, eu, tivesse acesso a algum conteúdo que não deveria. Era isso ou poderia ser a exigente segurança de um colecionador de poucos recursos.
Satisfazendo minha curiosidade, às vezes, me emprestava para ver as revistas. Apensar visualizar mesmo, não sabia ler. Apesar disso, era muito prazeroso correr as páginas da Heróis do Futuro, da Japan Fury, da Wizard, das revistas que tratavam sobre games, os manuais de desenho, os comics, os portfólios de desenho dele e tudo mais que na caixa havia. Um novo mundo inteiro coube lá dentro.
Era um prazer identificar naquelas imagens os animes que passavam na televisão. Mas aquilo tudo deixou de ser um estímulo visual e passou a fazer contexto quando aprendi a ler. Meu Deus! Devorei todas as páginas de revistas. Descobre o que significavam os seus títulos, a origem daqueles personagens, o nome de seus criadores e quando surgiram. Passei a conhecer a história dos próprios quadrinhos.
Para o meu espanto, descobri que os japoneses liam de trás para frente e de cima para baixo, ao invés de nós, os ocidentais. Que os animes eram adaptações de mangás, e que guardavam grandes diferenças nas histórias. Conheci as diferentes trajetórias da Marvel e da DC ao longo dos anos, seus erros e acertos. Vislumbrei os gibis europeus e seu realismo, bem como cartoons e obras infantis diversas.
Adentraram a sala da minha memória os nomes de heróis e heroínas nacionais, incluindo seus autores. Como não podia deixar de ser, passei a praticar um desenho. Quanto mais enveredava pela história dos quadrinhos, mais queria fazer parte daquele mundo. Daquele jeito sonhador, com aquele tom grandiloquente que só as crianças podem dar a vida.
Passei a desenhar nas folhas de caderno, nos versos dos testes e provas escolares, nos rascunhos que meu irmão descartava. Embora gostasse mais de mangás, talvez por influência dos anime da TV aberta, não dispensava nenhuma leitura. Todos sabem que os quadrinhos são a porta de entrada para leituras mais pesadas. Quão prazeroso foi crescer e me deleitar com tantas páginas, visitar universos e expandir meus conhecimentos.
Meu sonho, para além de me tornar quadrinista, era possuir minha própria coleção de quadrinhos. Hoje estou mais velho. Não me tornei um quadrinista, nem meu irmão, ainda, pelo menos. Sou um escritor, ele também. Isso não importa, o que queríamos mesmo era contar as nossas histórias, e contamos. Faço o curso de História, e tenho uma pequena coleção de quadrinhos. Daquelas pequenas que não se vende, dá ou empresta.
Não sei até que ponto meu irmão mais velho sabe o quanto foi importante no meu processo de alfabetização, mas como o agradeço. Sem ele jamais teria o prazer de folhear um livro ou gibi, aliás, talvez nem sequer tivesse iniciado uma carreira acadêmica. Meu irmão mais velho, navegador dos mares da 9ª Arte, obrigado. E quem diria que tudo começou com uma caixa de tesouros na cumeeira da casa.
Por CALIEL ALVES