É bem provável que os leitores da The Bard conheçam a personagem que escolhi para minha coluna desta edição. Aliás, é bem provável que toda e qualquer pessoa minimamente interessada por boas histórias de aventura ou ligada a debates culturais já tenha ouvido ou lido seu nome, mesmo que não conheça os pormenores do livro original de onde saiu, do contexto de sua publicação, das tantas republicações e das inspirações de seu autor. Isso nem é necessário para que já esteja sensibilizada pelo intenso imaginário despertado por esse náufrago tão famoso.
Náufrago? Pela pista muitos já devem ter adivinhado que resgato aqui Robinson Crusoé, certo? Um personagem fictício que passou 28 anos de sua vida preso em uma ilha tropical nas Américas, período suficiente para que vivenciasse todo tipo de drama, desafio, aprendizado. O livro que o apresenta de forma autobiográfica, por meio de um tom confessional e uma arquitetura epistolar, por cartas, foi escrito por Daniel Defoe e publicado em 1719 no Reino Unido, como romance-folhetim, no jornal The Daily Post. Trata-se, pela historiografia literária, do primeiro romance publicado em capítulos em um periódico.
Além desse ineditismo, também o título completo em língua inglesa chama a atenção: The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe, of York, Mariner: Who lived Eight and Twenty Years, all alone in an un‐inhabited Island on the Coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque; Having been cast on Shore by Shipwreck, wherein all the Men perished but himself. With An Account how he was at last as strangely deliver’d by Pyrates.
Nota-se que a preocupação com o spoiler das histórias é invenção recente, já que temos aí, entregues pelo próprio autor logo na capa, os principais percalços vividos pelo herói… Sugiro uma tradução bem livre e aproximada, que me parece divertida: A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro: Que viveu Vinte e Oito Anos completamente sozinho numa Ilha desabitada na Costa da América, próxima à Foz do Grande Rio de Orinoco; Tendo sido empurrado à terra firme depois do Naufrágio, em que todos os Tripulantes pereceram exceto ele. Com uma Nota sobre como ele foi por fim tão estranhamente devolvido por Piratas.
Frontispício da Primeira Edição de 1719, com gravura assinada por Clark & Pine
Todo o charme genuíno do longuíssimo título se perde com o tempo nas sucessivas traduções, inclusive a portuguesa. Em 1785 sai por Henrique Leitão de Souza, em Lisboa, uma tradução direta da língua francesa, com o título bem encurtado, e em 1835 B. L. Garnier registra o super reduzido Aventuras de Robinson Crusoé.
Mas o escritor Daniel Defoe publicou um outro volume, intitulado The Farther Adventures of Robinson Crusoe, Being the Second and Last Part OF His Life, And of the Strange Surprising Accounts of his Travels Round three Parts of the Globe. Vamos lá nos divertir mais um pouco: As Novas Aventuras de Robinson Crusoé, Sendo a Segunda e Última Parte de Sua Vida, E das Estranhas e Surpreendentes Notas de suas Viagens por três Regiões do Globo. Em português europeu, estamparam Vida e Aventuras admiráveis de Robinson Crusoé, que contém a sua tornada à sua ilha, as suas novas viagens, e as suas reflexões.
No ano seguinte, em 1720, desrespeitando sua promessa, lança um terceiro volume, que dessa vez não dá continuidade ao rol de aventuras de viagem do agora não mais náufrago. Trata-se de uma coletânea de ensaios não ficcionais também escritos por Crusoé, que abordam temas como liberdade, solidão e religião, sob o título Serious Reflections During the Life and Surprising Adventures of Robinson Crusoe: With his Vision of the Angelick World (ou, seguindo nossas aventuras por estes mares, Reflexões Sérias Durante a Vida e as Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé: Com sua Visão do Mundo Angelical).
O autor parece realmente ter se encontrado nessa personagem, não? Parece ter se fixado na escrita em primeira pessoa de Crusoé, na sua visão do mundo e da vida. Fez dele marinheiro, náufrago, emissor de cartas, observador agudo, sobrevivente astuto, guerreiro, colonizador, amigo e inimigo, viajante desbravador e elaborador de teorias e costumes. Em resumo, um homem que se fez sozinho no tempo com bravura e consistência.
Supõe-se, entretanto, que a inspiração tenha surgido de uma história verídica. Um Robinson Crusoé de verdade? Chegamos então a mais uma curiosidade. Houve um marinheiro escocês chamado Alexander Selkirk, que pediu para a tripulação do navio em que viajava que o deixasse na ilha Más a Tierra, na costa do Chile, já que suspeitava que a galé não resistiria até seu destino. O capitão e os demais não toparam seu convite e decidiram partir, deixando Selkirk sozinho com seus pertences (sorte a sua, porque seu navio de fato naufragou). Assim ele viveu por quatro anos, do final de 1704 ao início de 1709 (a dez anos, portanto, da publicação do livro de Defoe).
A tripulação do navio inglês que por acaso o resgatou admirou-se com sua vitalidade e ouviu todas as suas histórias. Selkirk foi posteriormente entrevistado por jornalistas, e seu feito ganhou notoriedade à época, estimulada pelo livro que o capitão do navio, Woodes Rogers, publicou relatando, dentre outras, aquela aventura. Certamente Defoe tomou conhecimento da notícia e sua repercussão, bem como do livro de Rogers, encontrando fontes suficientes para seu náufrago. Tanto que a ilha Más a Tierra passou a ser chamada em 1966 Ilha Robinson Crusoé.
Mas essa história não terminou. É também provável que Defoe tenha sido influenciado por outro livro, publicado originalmente em árabe, O Filósofo Autodidata, do andaluz Ibn Tufail, um romance do século XII (recém-lançado na Europa nesse período que retratamos na tradução em latim) que, adivinhem só, narra a experiência de um personagem isolado em uma ilha deserta.
Como nem só de leituras vive o homem, muito possivelmente o romancista também se nutriu de suas próprias experiências pelo continente europeu como comerciante para escrever as aventuras do seu marinheiro.
O nome de batismo do escritor londrino era Daniel Foe. Querendo torná-lo mais aristocrático, aos 35 anos de idade, ele mudou para Daniel de Foe, usado separadamente para indicar uma origem de família nobre. Tempos depois, o prefixo foi acoplado ao sobrenome, daí Defoe. As primeiras referências sobre o autor no Brasil e no exterior trazem a designação de Foe, como pode ser visto, por exemplo, nas traduções francesas e na tradução publicada pela Garnier no início do século XX. (FARIA, 2008, p.41)
Nascido em 1660, além de tentar a vida nos negócios, dedicou-se também a panfletos jornalísticos e artigos periódicos, como jornalista, tendo fundado o The Review. Depois escritor de ficção, faleceu em 1731, cerca de 11 anos após a publicação de uma obra que se tornaria, no século XIX, a única da literatura ocidental com o maior número de reimpressões e traduções, totalizando centenas de versões, muitas adaptadas a outros públicos, como o infantil, recebendo naturalmente mais ilustrações que a primeira edição.
Como nosso propósito na The Bard é tornar a literatura brasileira mais conhecida e apreciada, destaco aqui duas adaptações bem relevantes: a de Monteiro Lobato, publicada em 1931; e a de Ana Maria Machado, em 1995. Ambas reduziram bastante, como de praxe, a extensão do texto original e a dimensão dos detalhes narrativos para se adequarem à natureza do gênero e do público. Conquistaram espaço privilegiado nesse nicho, sendo até hoje reeditadas, mesmo com a árdua concorrência (há dezenas de adaptações brasileiras de nomes conhecidos da literatura).
Folha de rosto da Edição de 1938 e Capa da Edição de 1960 de Monteiro Lobato
Fonte: Livraria Traça, 2022
Capa da Edição de 1995 de Ana Maria Machado
Fato inusitado também ocorreu em nosso país envolvendo o título da obra em muitas edições da adaptação de Monteiro Lobato: em Robinson Crusoe. Aventuras dum naufrago perdido numa ilha deserta, escriptas em 1790 por Daniel Defoe, a data da publicação inglesa está errada – o correto seria 1719, e o erro tipográfico, mesmo depois de notado, continuou sendo reproduzido nas capas por anos.
Em carta ao seu estimado correspondente Godofredo Rangel, ainda antes da empreitada, Lobato valorizou o livro do náufrago e outros congêneres:
Ando com idéias [sic] de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me como vivi dentro do Robinson Crusoe do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’Os filhos do Capitão Grant. (LOBATO, 1946, p.293)
Sentimos nesse desabafo a vontade de renovar nossa literatura infantil, mesmo que começando pela importação de histórias estrangeiras. Igualmente, Ana Maria Machado argumentou repetidas vezes, em entrevistas e textos, pela adaptação dos livros clássicos da literatura universal aos leitores mirins:
No caso das adaptações destinadas a um público juvenil, para que elas agucem a curiosidade e funcionem como um “trailer”, mostrando que existe aquela obra, tem aquele clima e trata daquilo — um dia a obra pode ser buscada em sua íntegra. (MONTEIRO, 2001, p.139 apud CARVALHO, 2006, p.118)
Alguns estudos já realçaram com precisão as semelhanças e diferenças entre tais adaptações, tornando essa tarefa aqui dispensável. Ao final listo tais pesquisas. De minha parte, sintetizo da seguinte forma: tanto Lobato quanto Machado atenderam a projetos de cunho didático, visando à formação do gosto infantil pela leitura, como evidenciam os trechos; ambos os escritores nacionais também se mantiveram fiéis à proposta original de “civilização” e aculturação do personagem indígena, o Sexta-feira, forjada por uma perspectiva eurocêntrica, e de obnubilação da educação formal em prol de uma educação que acontece pela ação cotidiana na sobrevivência na ilha; já Lobato preferiu manter o foco narrativo em primeira pessoa e dar mais destaque à mãe do protagonista, enquanto Machado optou pelo foco em terceira e atribuiu menos ênfase à estrutura familiar, tal como no original.
Essas observações fazem sentido se iluminadas historicamente:
No tocante ao estudo dos contextos de produção da obra fonte versus ao das adaptações selecionadas, as diferenças permitem compreender a distância estética, uma vez que, no século XVIII, a escrita da obra por Daniel Defoe representa um momento de ruptura com modelos literários vigentes, possibilitando a ascensão do romance, enquanto que, no final do século XIX e nas décadas de 1930 e de 1990 do século XX, têm-se ambientes literários em que o romance já está plenamente consolidado, por um lado; e a produção de livros para crianças e jovens conta com o pioneirismo de Carlos Jansen, começa a se firmar com o trabalho de Monteiro Lobato e encontra-se em pleno êxito com a contribuição de Ana Maria Machado, por outro. (CARVALHO, 2006, p.378)
Nossa aventura termina com a certeza de que toda produção literária é sempre fruto de seu tempo e seu povo, alimentada por fatos, boatos, sonhos, ideais, vida e literatura, e mais vida e mais literatura, e… , correspondendo sempre a projetos políticos de sociedade e de nação.
Espero que nesse ponto não mais naufraguemos.
Até a próxima edição!
Fontes de consulta:
CARVALHO, D. B. A. de. Adaptação literária para crianças e jovens: Robinson Crusoe no Brasil. Porto Alegre, 2006. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica.
DEFOE, D. Vida e aventuras admiráveis de Robinson Crusoe. Traduzida da língua francesa por Henrique Leitão de Sousa Mascarenhas. Lisboa: Impressão de Alcobia, 1785. V. I-IV.
______. ROBINSON CRUSOE. Aventuras dum naufrago perdido numa ilha deserta, escriptas em 1790 por DANIEL DEFOE. Adaptadas para as Crianças por Monteiro Lobato. Editora Nacional. São Paulo, 1931.
_____. Robinson Crusoe. Tradução e Adaptação de Ana Maria Machado. RJ: Editora Globo, 1995.
FARIA, G. de. As primeiras adaptações de Robinson Crusoe no Brasil. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 13, pp.27-55, 2008.
LIVRARIA Traça. Disponível em: https://www.traca.com.br/livro/152679/# Acesso em: 11 set. 2022.
LIVRARIA Traça. Disponível em: https://www.traca.com.br/livro/139560/ Acesso em: 11 set. 2022.
LIVROS grátis. Disponível em: https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-763/a-adaptacao-literaria-para-criancas-e-jovens–e034robinson-crusoee034-no-brasil Acesso em: 11 set. 2022.
LOBATO, M. A Barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1946. v. II, p. 293. (Rio, 07/05/1926)
VILLALTA, L. C. Robinson Crusoe, de Daniel Defoe: da
sua circulação no mundo luso-brasileiro ao seu diálogo com o devir
histórico. Disponível em: <http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/ pdf/luizvillalta.pdf>. Texto apresentado no I Seminário Brasileiro
sobre Livro e História Editorial, realizado de 8 a 11 de novembro
de 2004. Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Acesso em: 27 fev.
2008.
WIKIMEDIA Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Robinson_Crusoe_1719_1st_edition.jpg Acesso em: 11 set. 2022.
WIKIPÉDIA. Daniel Defoe. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Defoe Acesso em: 11 set. 2022.
_____. Robinson Crusoe. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Robinson_Crusoe Acesso em: 11 set. 2022.
Por VANINA SIGRIST