A tarefa de estabelecer datas e ocasiões precisas para qualquer movimento social é bem árdua, como sabemos: ou porque vivemos por milhares de anos sem fazer uso de documentos históricos determinados, ou porque perdemos tais documentos em tantas catástrofes e ruínas; ou porque generalizamos o entendimento de um processo de formação ou transformação ignorando pressupostos teóricos rigorosos, ou porque listamos todos eles e, exaustos, verificamos que ainda assim não permitem esgotar todas as perspectivas em questão. Independentemente do cenário, dificuldades de várias ordens predominam em estudos historiográficos, e com o nascimento das literaturas não é diferente.
Quem de nós sabe responder quando verdadeiramente começa uma literatura nacional? Eu mesma não sei. Melhor dizendo, responderia que depende. Depende de muitas questões. Como o tema-chave desta edição da The Bard me impôs esse desafio – o de refletir sobre o surgimento de uma literatura tipicamente brasileira, como não fazia desde os anos 2000, durante minha faculdade de Letras, trago aqui alguns pontos que nos ajudam a, ao menos, nos aproximarmos de uma resposta.
Primeiro ponto, é bom que a gente compreenda que essa dificuldade de estabelecer limites claros não acomete só a nossa literatura, evidentemente. A inglesa e a francesa também. Porém, a nossa história de formação enquanto país, considerando antes, durante e após o período colonizatório, carrega marcas específicas, inegáveis, que necessariamente devem ser levadas em conta (e que, nesse sentido, aglutinam as literaturas de nações colonizadas como a nossa). Afinal, a literatura pressupõe a existência de autores, obras e leitores em conexão, dentro de um coletivo, falante de uma língua, representativo de uma cultura (ou, no caso do Brasil, todos esses termos no plural, tendo em vista a gama de povos, saberes e dizeres desde que Brasil ainda nem era Brasil).
Em segundo lugar, é preciso definir se a literatura nacional é aquela escrita e lida em território nacional ou não. Me parece que é essa a lógica das inteligências artificiais, porque, curiosa que só, lhes perguntei para ver se me ajudavam com ideias para esta coluna. A resposta que prontamente me ofereceram é que a literatura brasileira teria tido início no século XVI, no período colonial, com a produção de textos escritos nestas terras. Textos, aliás, não estritamente literários, tal como entendemos o universo da ficção hoje, mas de cunho religioso ou político, como as cartas de Pero Vaz de Caminha. Será que é certo afirmar que a literatura brasileira nasce de uma escrita europeia que busca inutilmente justificar decisões vis e ações violentas de colonização e catequização dos nossos indígenas? Creio que os robôs estejam com uma percepção equivocada demais do nosso problema, nos induzindo a erros metodológicos graves.
O terceiro ponto, consequentemente, diz respeito a buscar fontes confiáveis de pesquisa, na historiografia e na crítica literária, para saber qual o ponto de partida desses livros monumentais. Para isso, revisitei meu Antonio Candido e meu Alfredo Bosi (lidos pela primeira vez aos meus 18 anos, com grifos e anotações em muitas páginas de que claramente não recordava). Esses autores, clássicos nos estudos de formação da literatura brasileira, relatam em seus prefácios as tantas escolhas que tiveram de enfrentar para produzir obras que renunciassem a velhos modelos interpretativos e se prestassem, por isso mesmo, a serem alvos de ataque do público intelectual da época.
O primeiro volume da Formação da Literatura Brasileira de Candido é de 1956, e o segundo e último, de 1957. Ele próprio indica as referências que tinha em sua biblioteca e que naturalmente teve de digerir, apesar de toda reverência, para produzir algo novo: a História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, que data de 1902, figura no topo da lista, seguida de outras leituras ginasiais do sociólogo, como as obras correlatas de Ronald de Carvalho e José Veríssimo. Sua proposta para a literatura brasileira recebeu desde o lançamento duras críticas porque apresentava como movimentos literários precursores em nosso país o Arcadismo e o Romantismo, causando alvoroço pela omissão dos movimentos anteriores (como se aqui antes disso literatura não houvesse). Imaginem a repercussão. Candido se explica no prefácio à segunda edição, reiterando os critérios que havia seguido para a composição de seu livro, os quais levavam em conta dois pontos essenciais para ele: considerar existente a “literatura” tão somente quando já organizada num sistema bem definido de elementos e funções, o que, segundo ele, só teria ocorrido no século XVIII, e considerar a literatura feita aqui “brasileira” tão somente quando se mostrasse eminentemente interessada na construção de uma cultura genuína e válida para nosso país. Em resumo, literatura no Brasil existia desde 1500, mas sua metodologia na Formação estabelecia um recorte histórico bem mais restrito.
Bosi, na sua História Concisa da Literatura Brasileira, ainda estava imbuído de um espírito semelhante, apesar de passados 25 anos dos volumes de Cândido. Antecipa na Introdução suas justificativas ao considerar tipicamente documental uma primeira produção textual em território nacional, e não literária, como as cartas e os sermões portugueses, e ao considerar escassa, meros “ecos” da Europa, a produção barroca brasileira, retratando metrópole e colônia como de segunda e terceira ordem no cenário estético. A literatura brasileira para Bosi ganha força política, temática, poética de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Basílio da Gama (1740-1795) em diante. Antes ainda estávamos por aqui sob a difícil influência do processo identitário da nossa colonização (nessa pauta, aliás, Bosi sequer menciona a dizimação dos povos nativos e africanos escravizados, destacando simplesmente as matérias-primas daqui extraídas, como o pau-brasil e o ouro, e sugerindo que apenas o português e o negro aculturaram-se nas nossas terras).
Essa brevíssima resenha de duas das muitas obras críticas sobre a história da literatura brasileira basta para que possamos chegar ao quarto e último ponto a ser considerado: literatura, afinal, é só a produção escrita em território nacional que objetiva expressar com qualidade política e estética (entendam na chave da velha discussão conteúdo-forma) a cultura do povo que vive nesse território, mais livre do jugo cultural de seus exploradores, ou compreende também a produção oral? Nesse caso acho muito mais justo e historicamente coerente ajustarmos a cronologia das origens para uma época em que aqui os membros das nossas tribos contavam histórias, acreditavam em mitos e cantavam durante variados rituais e festividades.
Se aceitarmos ampliar a definição de literatura para expressão verbal não escrita e que não pretende deliberadamente, ao ser produzida e compartilhada, pertencer a uma lógica de categorias artificiosas (digo isso porque, uma vez que finalmente localizarmos o início da literatura brasileira, começaremos imediatamente a nos debruçar sobre um segundo problema, que é o de pontuarmos o início do romantismo brasileiro, sobre o qual há menos consenso ainda, e lá vamos nós para um terceiro debate, e…), então concluiremos que a literatura brasileira estava sendo praticada aqui muito antes de 1500 – e não muito depois, como nos fizeram acreditar. A ótica muda radicalmente, certo?
Por isso, saber quando a literatura brasileira começou depende. Depende de muitos fatores. Se preferirmos esperar que o país se forme mais integralmente e receba o derradeiro nome de batismo Brasil para vislumbrar com mais nitidez o público que produz e que consome livros, a resposta é uma. Se decidirmos mergulhar nas raízes da nossa história colonizatória e buscar casos mesmo que isolados de autores pertencentes às ilhas culturais que aqui se formavam antes de uma nação totalizante, a resposta é outra. Se abolirmos os modelos de representação ocidental na tentativa de respeitar os povos originários e suas culturas extremamente criativas e instintivas, essas sim tipicamente brasileiras (anteriores a todas as miscigenações subsequentes), a resposta é ainda uma terceira – a que sinceramente mais me atrai, ainda que eu admita aqui não a ter explorado suficientemente.
Espero que as outras contribuições desta edição da The Bard ajudem a iluminar caminhos sempre novos de reflexão, sobre a nossa literatura, tão viva e excitante, e todas as outras que pudermos conhecer.
Até a próxima!
Por VANINA SIGRIST