LIVRO: A hora da estrela
AUTORA: Clarice Lispector
Macabéa, por quê? A narrativa questionadora de Clarice Lispector
Que ninguém se engane,
só se consegue a simplicidade
através de muito trabalho.
C.L.
Por que escrevo? Acredito que esta pergunta ronda (ou deveria rondar) o pensamento de toda escritora (e escritor). Por que me importo? Por que tenho dúvida, e tendo dúvidas, quero sair de mim e sondar o mistério? É… parece que estou mudando o meu modo de escrever. Talvez com mais coragem, ou com aquilo que… como é mesmo o nome? Amor. É um novo ano. Ensinamento antigo. Sim, Clarice, eu sei. É preciso não saber. Nós que queremos sempre saber, e controlar, e fazer perfeito.
Mas o que é um ser humano? O que é saber? Não, não. A pergunta está errada. Cada coisa tem o seu nome. O nome é: afeto. O que me afeta? É isso! Decidi escrever sobre um livro de uma escritora, porque isso me afeta; porque não tenho respostas, mas tenho desconfianças, e um amor enorme de tudo. Estou grávida de mundo e, neste momento, sou mãe de Deus. Ai de mim, ai de nós. Somos tão terrivelmente humanas, e tragicamente angelicais. Ainda assim, que obra de arte é a palavra! Desconfio que o narrador de A hora da estrela, romance de Clarice Lispector, é um escritor por osmose, um narrador-autor póstumo que quer entender, que é uma outra vida ficcional. É uma vontade saber, bem eu sei, assim como aquela que me afeta; que afetou o narrador; que afetou Clarice; que, na verdade, somos nós. Quero falar dela: Macabéa e sua imaginação.
O livro foi publicado pela primeira vez, em 26 de outubro de 1977, pouco antes da autora ingressar no hospital do INPS da Lagoa, no Rio de Janeiro. Um pouco antes de sua hora da estrela. Foi um romance escrito à mão, em fragmentos de papel, que mais tarde foram reunidos para a versão final pela autora, com a ajuda de sua secretária, Olga Borelli. E, agora, eu recolho fragmentos de memória… Quando foi que eu te li pela primeira vez? Pergunto-me: Clarice ou A hora da estrela? E tem diferença? Toda, Criatura! Toda! Veja, meu bem: a primeira vez que eu li Clarice foi adolescente, no ensino médio, uns 16 anos redondos. Eu devorei Perto do coração selvagem, como quem devora a própria linguagem, como quem descobre algo muito precioso, como quem descobre a vida. Eu era uma menina, com um livro quente nas mãos, queimando a minha pele, o meu coração. E, no final do livro, eu já não era mais uma menina. Eu era uma mulher com o seu amante.
Veja, meu bem, eu fui ler A hora da estrela, muito tempo depois. Depois de muitos Machados e Gracilianos. Não, não. Na verdade, foi um pouco depois. É que, no presente, todo passado parece muito antigo, ou anos muito recentes. Ou também seja a minha memória defasada. Enfim, voltemos ao que interessa: uma história de arrancar os pêlos [sic] da nuca, antes da minha nuca perder os pelos e a palavra pelo perder o acento. Eu já estava na faculdade e li o romance por exigência de alguma matéria, mas que, antes já figurava na minha vontade de ler. E foi… como se diz? Amor à primeira lida! Ai, como eu sofri Clarice! Como eu sofri com Macabéa. Eu que era eu mesma uma Macabéa, tão boba e tão jovem. Ainda viria a sofrer muito por causa disso. E durante muito tempo eu odiei a Macabéa! Por que ela não se defende? Por que ela finge não saber? Assim como eu odiei a mim mesma pelo fato de ter sido tão ingênua a ponto de sofrer tanto. De quê? De mentira alheia, de falta de autocuidado, de comprar a farsa (nem tão bem montada) de homem, essas coisas que as mulheres sabem. Sabem! Acreditei em muita besteira. Na besteira de ter de me comportar de determinada maneira, de ser de tal forma para ser aceita, essas coisas que a gente sabe. Ah, a gente aprende!
Mas, Macabéa, eu me redimi com você e comigo mesma por conta da inocência. Eu finalmente entendi! Como saber aquilo que não se sabe antes de sabê-lo? E se não passar pelo vale do sofrimento, como saber que posso vencê-lo? Como saber que somos mais, muito além da sorte, da cartomante? Somos pulsão de vida, de transformação! Mas, é claro, o conhecimento vem com um custo. O saber vem com a morte de quem você era quando não sabia, vem com a hora da estrela. Bem eu sei! Não há uma única gota de inocência que saia impune, nem de sabedoria que venha sem um rasgo, uma cicatriz.
Eu entendi isso com muita clareza agora na releitura. E bem que Clarice já afirmou em entrevista (de forma irônica) que ela ganha na releitura. Na ocasião, um crítico desses bem empolados, ligou para Clarice para reclamar que leu a sua obra e não entendeu nada e, no mesmo dia, ela recebeu a ligação de uma menina de 16 anos dizendo que amou o seu livro (A hora da estrela). Que curioso! Ele queria entender como quem empalha passarinho. Meu amor, passarinho não é para ser esquadrinhado com régua. Passarinho é para voar. A menina entendeu esse sentido como quem estremece, como quem observa pássaros com binóculos de ouro.
Sim, Clarice. Por que eu escrevo? Porque eu amo. Eu te amo. Eu me amo. Eu amo as Macabéas que nós fomos. E as que virão. Eu choro pela hora de suas estrelas, que virão. Não há dúvida. Mas também virá o crescimento: brotinhos que hoje são sonhos, amanhã terão cachos de orquídeas. Como eu sei? Eu também sou o escuro da noite. E, você, minha flor, por que você escreve?
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.
Por SUZANE VEIGA