LIVRARIA ENCANTADA – Canções para desviver – Flávia Joss

LIVRARIA ENCANTADA – Canções para desviver – Flávia Joss

LIVRO: Canções para desviver

AUTORA: Flávia Joss

 

“escrevo porque o verso pulsa”: vibrando a poesia musical de Flávia Joss

Uma resenha por Suzane Veiga

 

Viver é uma canção repleta de contradições, você solfeja? 

F.J.

 

Ausência. Silêncio. Vazio. Não é só de melodia e de letra que se faz música, mas, principalmente, de pausa. Assim também é a poesia: uma teia feita de buracos, entremeada de notas – às vezes grandes acordes – mas que se constrói, de fato, nos hiatos. É no romper dos dias, nos momentos em que se emudecem as palavras, que contemplamos o nada (que é o tudo, enfim) – a solidão das horas.

Em Canções para desviver, de Flávia Joss, vemos essa coragem, que é tão rara, de olhar a vida de frente, quando se sabe que é tão mais fácil desviar o olhar, fingir não ver a miséria (externa, interna e alheia). Sentir o incômodo. Então, nossa poeta sabe que escrita é coisa séria, é missão de (des)enterrar ossos, afiar a palavra na lâmina da liberdade, ter a bravura de olhar-se nos olhos.

Canta a mulher com os poemas prenhes de luz, embora com um verso ainda preso na garganta. É vôo, é luta, é luto, acalanto, memória, fluidez. É, sobretudo, recolher os rastros: “pés passados no tapete/ porta entreaberta/ nuvem de poeira/ rabiscos/ na lixeira/ papéis amassados/ torneira aberta.” E dizer o indizível daquilo que ficou esquadrinhado na lembrança.

O que restou de mim em mim mesma? O que há em mim que se transmuta, que desassossega, na inexatidão do espelho, do amor, do mundo? O poema mesmo responde: “imergir/ deixar-se florir/ até despetalar”. É purgar a ferida aberta “de cada caos que se (re)faz/ nos recônditos cômodos/ dessa escuridão assaz”.

E o verso, belo e pungente, está exposto, suado, doído, em gotas de pavor e ousadia. É canção para desviver, luminescência, um esforço de lavrar o silêncio, guardar nas fendas da existência grãos de vida, incômodos, rudezas, para espantar a morte com a crueza das palavras. Sim, é desfazer, por fim, a flor, o laço: “no milagre diário da escrita/ (re)nasço”.

Líquida, etílica, e (agri)doce, a poesia de Joss é naco de desejo, sabor orvalhado de saudade, de ritmo persistente de ouvidos no vácuo. Na introspecção do seu verso, eu me vejo humana. No silêncio deste domingo, há palavras de Canções para desviver espalhadas por toda a casa, preenchendo o vazio. Vigília. Pausa do sol. Trilha de vida. Itinerários poéticos.

*Texto publicado originalmente no site Mapa das Letras.

 

Referência bibliográfica:

JOSS, Flávia. Canções para desviver. São Paulo: M.inimalismos, 2023.

Por SUZANE VEIGA

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