LIVRO: Coração de Cleópatra
AUTORA: Cyntia Fonseca
A descoberta de si em Coração de Cleópatra: identidade, trauma e feminino na escrita de Cyntia Fonseca
– Uma resenha por Suzane Veiga
(…) no meu decimo sétimo aniversário eu também fui marcada por uma lição: a felicidade plena não existe.
C.F.
Certa vez, ao receber um prêmio literário, Rubem Fonseca afirmou: “Escrever foi a mais agoniante de todas as lutas que enfrentei”. E o que se enfrenta no ato da escrita? Um tema, uma questão social, as lembranças, o imaginário, ou a própria linguagem?
Cyntia Fonseca oferece em “Coração de Cleópatra” não só um romance vigoroso e corajoso, mas uma protagonista lutadora e valente que traz, no próprio nome, a majestade de uma antiga princesa do Egito: Cleópatra. Porém, essa linhagem inicial do nome vem com uma dissociação da própria identidade, pois a jovem reconhece os paradoxos entre ela e essa figura feminina histórica e simbólica: “(…) aos 17 anos já era admirada por suas qualidades de estadista, sua inteligência, energia, além de paciência e tenacidade. O que temos em comum além do nome? Definitivamente nada. Ou talvez o detalhe da idade possa ser considerado.” (FONSECA, 2021, p. 17).
Mas, Cleo, para os íntimos, precisará transpor várias dificuldades impostas pela vida: desde uma infância árdua no orfanato até fatalidades (e amores) que aparecerão no seu caminho para se tornar, verdadeiramente, a soberana da sua própria história e dona do seu caminho para se tornar delegada. A ausência da mãe, pois esta faleceu quando Cléo nasceu, marca a falta estrutural; a ausência identitária e fratura incurável, como ponto de não retorno. Este fato impulsiona a jovem Cléo a se deslocar do espaço do orfanato para o mundo, da adolescência para a maturidade precoce, do coletivo das meninas para o individual – busca do self, jornada da (anti-)heroína em busca de sua identidade, pois lhe falta o ponto de ancoragem do eu: rejeita o próprio nome (exilada de si), a figura fantasmática da mãe, e o vazio materno do orfanato.
A estória, que se passa entre o cenário deslumbrante de Petrópolis e o caos do centro do Rio, possui uma deliciosa e instigante combinação de elementos que tornam o livro único e especial – a conexão irresistível entre o sedutor Victorio e a então inocente Cleo, de dezessete anos, que experimenta os seus primeiros desejos de liberdade e momentos de descoberta de si. Para uma menina saída de um orfanato na cidade imperial, o descolado Victorio representa a descoberta do novo, o romance tórrido, e a aventura na cidade grande, passaporte para a vida adulta e liberdade, que tanto deseja: “(…) Ele era o oposto de toda a calmaria que eu havia vivenciado até então (…) tudo em Victorio me afastava da garota nerd e acanhada que eu vinha sendo” (FONSECA, 2021, p. 36).
Mais tarde, outros elementos complementam a narrativa que intercala passado e presente para montar o mosaico da protagonista: a vivência do amor autêntico com Lucas; a amizade entre Cleo e Linda, que se apoiam numa sororidade potente e revolucionária; a abordagem de temas considerados tabus, como a violência sexual, bem como a toxicidade e os traumas que sustentam muitas ligações familiares.
Na esteira da genialidade do Rubem, também Fonseca, Cyntia constrói, em seu primeiro romance, um universo ficcional inspirador e apaixonante, em que Cleo representa as mulheres que enfrentam o seu próprio destino com bravura, sendo, por isso, leitura imprescindível para todas e todos que desejam encontrar os rumos do seu “Coração de Cleópatra”.
Referência bibliográfica:
FONSECA, Cyntia. Coração de Cleópatra. Niterói: Itapuca, 2021.
Por SUZANE VEIGA