As óperas são por demais absurdas e extravagantes.
Olho para elas como uma cena mágica que agrada aos olhos e aos ouvidos,
mas que sacrifica o entendimento.
Lorde Chesterfield
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Escrever sobre ópera não é uma tarefa fácil, porque ainda hoje é uma arte bem menos apreciada e popular do que outras, principalmente no Brasil, exigindo que se imagine qual a real afinidade dos leitores com a pauta. Quem verdadeiramente curte ópera? Quem conhece seus grandes nomes e títulos? Quem a ouve ou a assiste com frequência e com entusiasmo nos esplendorosos teatros das capitais mundiais? Certamente um público bem restrito.
Eu mesma passei boa parte da vida alheia à ópera. Ouvia falar a seu respeito e via pequenos trechos televisionados de certas apresentações em grandes cidades brasileiras ou estrangeiras, mas sabia muito pouco de suas origens, sua tradição e sua essência, até a minha juventude. Talvez vocês aqui na The Bard se identifiquem com esse relato.
O que corriqueiramente ouvimos é alguma frase como “e qual é o resumo da ópera, hein?”. Nesse caso, a vontade do interlocutor impaciente é ir direto ao ponto, evitar as famosas lengalengas, e o uso dessa expressão, apesar de nem todos saberem de onde vem, já denota uma certa familiaridade. Essa “ópera” mencionada aí é herança do vocábulo italiano opera, que significa “obra”, seja ela teatral, musical, literária ou arquitetônica, antecessora do surgimento da ópera como o que designamos hoje.
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Chamavam de sommario dell’opera uma encadernação que reunia as várias publicações feitas num determinado período (ou seja, as obras, do plural em latim opera, cujo singular é opus). Isso antes que surgissem, no século XVII, os pequenos livretos que continham, aí sim, o resumo da ópera que seria executada como espetáculo (Sousa, 2025). Histórias de nomes são sempre fascinantes, não acham?
É natural que uma nova expressão artística tenha surgido sem que ainda houvesse para si a etiqueta apropriada. Essa curiosidade já nos faz entender um pouco mais dessa manifestação complexa e, evidentemente, longa, muito longa, não à toa sentindo-se a necessidade de resumir sua história, que durava, imaginem, quatro horas. Essa questão da duração das peças operísticas pode até ser motivo de riso ou de chacota.
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Com sua grandiosidade e emoção, as óperas resistem ao efêmero, trazendo à cena a intensidade da vida.
Uma amiga recentemente me contou que preveniu seu filho de dez anos de que a ópera a que assistiriam numa data combinada seria bem demorada, esperando dele a paciência necessária. Depois de um tempo do espetáculo, quando as luzes do teatro se acenderam, disse aliviado que não havia sido tão chato assim. Mal sabia ele que havia terminado tão somente o primeiro ato.
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Com meu filho de mesma idade aconteceu algo também engraçado, aqui em casa. Perguntei-lhe como achava que eu deveria iniciar esta matéria, a partir de que informação sobre esse mundo tão rico da ópera deveria redigir meu texto, e ele, sem titubear, respondeu que eu deveria mencionar o fato de que existe até um bolo chamado “ópera”, todo cheio de camadas deliciosamente recheadas de ganache e creme. Como não sei se todos aqui já o experimentaram, aviso que se trata de uma receita francesa à base de pão de ló de amêndoa (ou joconde, na língua original) estruturado em várias camadas que harmonizam café, chocolate e manteiga à perfeição.
Com isso não pretendo deixá-los com água na boca, desviando-me do foco central. A ideia é revelar que as camadas do delicioso gâteau fazem referência aos vários níveis arquitetônicos de uma casa de ópera, ou, outra hipótese, que a sobremesa teria sido assim nomeada em homenagem à Ópera Garnier, em Paris. De todo modo, com tais anedotas podemos pensar no ambiente em que a ópera é apreciada, incluindo a acústica engenhosamente executada, a disposição geométrica precisa dos assentos e camarotes, o deslumbre das finezas de ouro depositado sobre os elementos neoclássicos, como no Teatro Alla Scala, em Milão, na Itália, que data de 1778 e é considerado um dos mais famosos do mundo.
No entanto, para que os leitores não saiam daqui com a ilusão de que as óperas de maior renome só se enquadram nessa proposta, trago a referência de uma construção totalmente moderna, tecnológica e orgânica, projetada pelo dinamarquês Jørn Utzon com predominância de telhados brancos, revestimento cerâmico de excelência, transparência de vidros que permitem compor com todo o cenário portuário do entorno: a Ópera de Sydney, na Austrália, que levou quase duas décadas para ser finalizada, foi inaugurada em 1973 e há quase vinte anos consta como Patrimônio Mundial na lista da UNESCO.
Imagem de Ópera de Sydney, na Austrália por Freepik
Esse contraste nos ensina sobre a popularização da ópera nos dois últimos séculos. Ainda que com raízes em cortes da Europa muito elitizadas e públicos seletos e endinheirados, vivenciamos aqui no Brasil, na década de 1990, a ascensão midiática de tenores e sopranos mundialmente conhecidos. Pavarotti, Domingos e Carreras formavam o trio que mais contribuiu para a familiarização do público brasileiro com o gênero nessa época. E depois deles vieram outros, num processo de globalização cultural que viabilizou, por serviços de streaming, gravações antigas de grandes vozes no palco, como Maria Callas, sempre tão linda e intensa, e que reinterpretou clássicos, como a Carmen de Georges Bizet na performance paródica de Stromae (cuja canção é homônima).
Imagem de Carmen de Georges Bizet na performance paródica de Stromae, por Google
Com Carmen, aliás, podemos sentir o quanto na ópera o libreto e a composição são igualmente fundamentais (aqui contrario um pouquinho Coli, 1998). Baseando-se na novela de mesmo título do francês Prosper Mérimée (que descobri no meu curso de Letras), os libretistas Henri Meilhac e Ludovic Halévy adaptaram o enredo original da literatura, e Bizet, enquanto músico, foi o compositor do que seria orquestrado e cantado ao vivo, pela primeira vez em 1875, na Ópera-Comique em Paris.
A obra, entretanto, escandalizou críticos e públicos à época, devido principalmente à personagem feminina que protagoniza a conturbada história de amor, a cigana sedutora, livre e cheia de si; mas, ainda assim, na contracorrente, intelectuais proeminentes como Nietzsche elogiaram abundantemente a maestria da peça:
Toda vez que eu escuto Carmen eu me sinto mais filósofo, um filósofo melhor, do que eu geralmente me considero (…) também um melhor músico, um melhor ouvinte. (…) Finalmente, o amor, amor traduzido novamente em natureza. Não o amor de uma “virgem suprema”! (…) Eu não conheço nenhum caso onde a piada trágica que constitui a essência do amor é expressa tão estritamente, transformada em uma terrível fórmula, como no último choro de Don José (Nietzsche, apud Vasques, 2019, s/p).
Alguns professores da minha faculdade nos fizeram conhecer também Madama Butterfly, ópera de Giacomo Puccini e libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, baseado no drama de David Belasco, que, por sua vez, recupera uma história escrita pelo advogado estadunidense John Luther Long. Essa recordação dos meus tempos de universitária carrega consigo duas considerações necessárias sobre óperas no geral: o quanto se nutrem de fontes literárias, musicais, teatrais e de toda natureza artística; e o quanto seus cantores se expressam no palco, com corpo e alma, encenando gloriosa e tragicamente narrativas difíceis.
Interpretar uma jovem imatura, traída e prestes a acabar com a própria vida depois de tanto sofrer por atitudes perversas do ser amado exige muito tanto física quanto emocionalmente da intérprete de Cio-Cio-San em Butterfly (sobre esse aspecto da dissonância visual entre o corpo físico da cantora lírica, frequentemente com mais de cem quilos, e o corpo imaginário da personagem fragilizada ou delicada, referencio novamente Coli, 1998).
A tragicidade de grande parte das óperas advém, como vocês devem supor, das peças teatrais gregas, marcadas pelo choro, pela violência e pela morte. A cultura helênica seria, para diversos estudiosos, a influência mais remota, não só pelo trágico, mas também pela reunião do teatro e da música, já praticada em encenações de um Édipo Rei de Sófocles, por exemplo, com a inescapável presença de um coro. Essa herança antiga não deve ser perdida de vista, salvaguardadas as devidas proporções.
Outros estudos (Abbate e Parker, 2015), de modo complementar, apontam que precisamente no século XVI em Florença, na Itália, a ópera surgiu firme e forte, no esteio das comédias madrigais, com Dafne, em 1598, dos italianos Jacopo Peri e Ottavio Rinuccini. Infelizmente, porém, o texto integral não sobreviveu à passagem do tempo, restando dos mesmos autores Eurídice, de poucos anos mais tarde, executada até hoje.
Imagem de Dafne é a mais antiga composição que se pode classificar como ópera. A música de: Jacopo Peri e Jacopo Corsi, com libreto de Ottavio Rinuccini.
De lá para cá, muitas óperas foram escritas e encenadas, fazendo jus ao epíteto “teatro posto em música”. Ora novas versões das clássicas, ora propostas inéditas, ora cômicas, ora trágicas, de culturas colonizadoras ou colonizadas, de europeias a brasileiras, elas continuam, na minha percepção, ao longo dos séculos e a despeito das suas próprias crises e das crises externas, enfrentando o mundo com muita coragem. Sobrevivem, engajam especialistas, fascinam apreciadores, empregam artistas, sempre e sempre. São uma resistência. Enorme, inclusive, em tempos de consumo frenético, contemplação dispersa e banalização da potência da vida.
E se dependerem de nós, aqui na The Bard, continuarão vivíssimas, para poucos ou para muitos.
Até a próxima!
Referências:
ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015.
COLI, Jorge. Ópera desperta paixões desde 1600. Caderno Especial. Folha de S. Paulo. 24 mar. 1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj24039803.html. Acesso em: 04 jan. 2025.
SOUSA, Rainer. Resumo da ópera. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/resumo-opera.html. Acesso em: 03 jan. 2025.
VASQUES, Juliana. Carmen: saiba (quase) tudo sobre essa ópera fascinante! Musicalidades. 19 mar. 2019. Disponível em: https://musicalidades.com.br/opera-carmen-historia/. Acesso em: 04 jan. 2025.
Por VANINA SIGRIST