Música e literatura são artes irmãs, unidas desde o nascedouro… Durante a Antiguidade Clássica — período que antecede a era cristã — os gregos tinham uma visão holística da arte, não dissociando nenhuma de suas manifestações. Os espetáculos artísticos abraçavam música, dança, teatro e literatura, formando um todo significativo, um conjunto coeso e harmonioso.
A palavra “música”, que vem do grego “mousiké”, em sua etimologia, significa “arte das musas”. As musas eram divindades inspiradoras da arte, havendo musas representativas das várias linguagens artísticas, tais como: Calíope, musa da poesia; Euterpe, da música; Terpsicore, da dança; Tália, da comédia, Melpômede, da tragédia… A música, no entanto, funcionava como fio condutor, responsável por aglutinar todas as linguagens em uma só performance; era, portanto, um convite à dança, um apoio à palavra e um apelo à expressão dramática.
A antiga e legítima aliança entre música e literatura, nascida no esplendor da Antiguidade Clássica, foi edificada ao longo da história das artes, atravessando séculos. Vale ressaltar que, ainda na era contemporânea, tal articulação é pertinente e merece especial destaque.
Como ponto de partida, com o intuito de exemplificar a expressiva comunhão entre música e literatura, convém considerar a função prioritária dos instrumentos musicais como indispensáveis no acompanhamento de poemas, quer de caráter religioso, quer de exaltação às proezas de heróis, durante toda a Antiguidade Clássica.
Vale salientar que os gregos adotaram, em sua prática poética, os instrumentos musicais oriundos da cultura egípcia; vários instrumentos, tais como a lira, a cítara, a harpa, flautas de tamanhos variados e alguns instrumentos percussivos (tambores e chocalhos) constituem um valioso acervo musical desse período, sendo a lira o instrumento preferido e, portanto, utilizado de forma recorrente no acompanhamento de poemas. Graças ao uso frequente da lira, o termo lirismo foi definitivamente incorporado como sinalizador do gênero poético.
Outro aspecto relevante a ser considerado, na comunhão música e literatura, é a atribuição do nome das notas da escala. A denominação das notas teve origem, a princípio, nas letras do alfabeto — critério ainda utilizado em países anglo-saxões, em que o A corresponde ao lá, o B ao si, o C ao dó, o D ao ré, o E ao mi, o F ao fá e o G ao sol. Já nos países latinos e eslavos, a denominação das notas musicais deve-se ao monge italiano Guido D’Arezzo, que, no século XI, idealizou um sistema para facilitar a memorização das sete notas musicais, usando as sílabas iniciais de cada verso do Hino a São João Batista:
Ut queant laxis/ (Para que possam)
Resonare fibris/ (ressoar maravilhas)
Mira gestorum/ (de teus admiráveis gestos)
Famuli tuorum/ (com fervorosos cantos)
Solve polluit/ (apaga os erros)
Labii reatum/ (dos lábios impuros)
Sancti Ionnis. (Ó São João!)
Assim surgiram ut, ré, mi, fá, sol, lá, e si (“s” de Sancti + “i” de Ionnis). Em 1693, seis séculos mais tarde, o vocábulo ut, sendo de difícil pronúncia no solfejo, foi substituído por dó.
Nos primórdios — entre a fala e o canto:
Caminhando mais ainda na linha do tempo e aportando na origem da linguagem, ou seja, a língua enquanto instrumento vital de comunicação humana, é de singular importância o que nos diz o linguista Segismundo Spina, professor catedrático da USP.
Segundo Spina, o aparecimento da linguagem humana abraçou um feixe de atributos, tais como a mímica, a interjeição, o grito modulado e o próprio ritmo, surgindo, posteriormente, os expedientes de formação lexical, a exemplo da onomatopeia e, ainda, o uso de comparações chegando até mesmo à metáfora — fatores determinantes para o aclaramento semântico e o enriquecimento verbal.
Darwin, em sua obra revolucionária “A origem das espécies”, publicada em 1859, sugere que algumas manifestações de natureza musical parecem ter precedido o desenvolvimento da linguagem.
As evidências apontam o canto e a dança como expressões que precederam a fala, sugerindo ser a música a linguagem da humanidade.
Não resta dúvida que os parâmetros sonoros – duração, intensidade, altura e timbre – são os mesmos para a voz falada e a voz cantada. É, portanto, através da articulação desses parâmetros, que obtemos as sílabas, os acentos vocabulares e o fraseio que conduz o fluxo da respiração.
É importante lembrar que as línguas primitivas são excepcionalmente ricas em inflexões expressivas. A fala cantada, embora não seja reconhecida como gênero, é assim nomeada pelos índios pertencentes à tribo Kuikuro, do alto do Xingu. (A pesquisa junto aos índios Kuikuros teve início no ano de 1976, estendendo-se por toda a década de 80, tendo à frente a doutora em antropologia e docente do Programa de Pós-graduação da UFRJ – Bruna Franchetto – como parte de seus estudos etnolingüísticos). (Cf. FRANCHETTO in MATOS / TRAVASSOS / MEDEIROS (org); 2001: 42).
Não há fronteira nítida demarcando o espaço da fala e do canto. A diferença gradual (entre fala mais ou menos melodiosa) é estabelecida mediante as celebrações e práticas rituais, considerando, entretanto, que a fala coloquial já mantém de modo significativo o caráter melódico (que diz respeito, sobretudo, à altura do som), revelando-se na voz falada através de ondulações tonais.
O Chinês, como língua tonal, apresentando várias entonações para a mesma palavra conforme seu sentido, guarda vestígios das línguas primitivas. As línguas tonais aproximam-se das sílabas-símbolos mântricas, onde a mais sutil variação de quaisquer dos parâmetros sonoros implica resultados significativos. (Cf. KOLLERT; 1994: 65).
Rolan Barthes, em entrevista concedida a Hector Biancotti, afirma:
“… da mesma maneira que hoje graças à noção de ‘texto’, aprendemos a ler a própria matéria da linguagem, assim, será preciso aprender a escutar o texto da voz, a sua significância, tudo que, nela, ultrapassar a significação”. (BARTHES; 1995; 206).
O texto da voz nos remete à linguagem única falada por todos os homens no relato da Torre de Babel – presente no livro do Gênesis: “Ora, em toda a terra, havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar.” (Livro do GÊNSEIS; 11 – 1: 14).
O som puro misticamente antecedeu a palavra e em virtude de seu poder evocativo faz aliança com a natureza, o que lhe concede forças transcendentais.
Em artigo intitulado O Grão da Voz, Roland Barthes nos diz: “… existe algo (…) que está além (ou aquém) do sentido das palavras, de sua forma (a litania), do melisma e até do estilo da execução. (…) O grão seria: a materialidade do corpo falando sua língua materna”. (BARTHES; 1990: 239).
A emissão da voz está, portanto, diretamente vinculada à concentração de energias internas e externas. A entonação, o ritmo, a cadência do fluxo verbal são fatores determinantes para o entendimento das palavras, o feedback do processo de comunicação.
O componente melódico (atributo do parâmetro da altura) parece vincular-se diretamente à área do afeto, motivando a E-moção, ou seja, o “movimento para fora” – a catarse – como versa na Arte Poética, de Aristóteles. (Cf. Aristóteles, Longino, Horácio; 1997: 24).
Segundo o musicólogo Bruno Kiefer, no desenvolvimento das línguas indo-européias, talvez o fenômeno mais significativo seja o deslocamento do tom para a intensidade, com um visível prejuízo melódico. Kiefer atenta para a preponderância do elemento rítmico (que envolve os parâmetros de duração e intensidade) na linguagem dos povos em geral, individualizando as diferentes línguas e implicando, ao mesmo tempo, o significado da mensagem emitida:
“… o ritmo é uma linguagem que se insere numa língua de um modo essencial, mas com certa independência. (…) Cada língua possui uma rítmica própria, uma rítmica geral, inconfundível (…) Na verdade, cada indivíduo sobrepõe a esta rítmica geral a sua própria, condicionada, por sua vez, pelo estado emocional e pelas intenções expressivas”. (KIEFER; 1979: 39).
O conjunto de fatores que envolvem a fala, aspectos relacionados ao ritmo, à cadência, ou mesmo às pequenas ondulações melódicas, esboçam uma melodia embrionária que caracteriza cada idioma e, particularmente, o modo de falar de cada indivíduo.
A linguagem atinge sua plenitude no canto, visto que a voz falada utiliza apenas uma parcela ínfima dos recursos vocais, enquanto o canto permite o uso de todo o potencial da voz e, por sua grandeza, chega, por vezes, a obscurecer a palavra, muito embora a glorifique.
A palavra — bússola sonora, no cantochão.
Nos primeiros séculos da Idade Média — o período mais longo da história, indo do século V ao século XV — a prática musical estava, sobretudo, vinculada à Igreja; cantava-se poemas religiosos e hinos em louvor a Deus.
Santo Ambrósio, bispo de Milão que viveu no século IV, muito colaborou com a escrita, ainda bastante imprecisa, dessas primeiras melodias religiosas. No entanto, foi somente no século VI, com a iniciativa do Papa Gregório (passando à história como “Gregório, o grande”), que foi estabelecida a unificação do repertório usado pelos cristãos para entoar louvores ao Senhor.
Com o título de “Regula Pastoralis”, Papa Gregório compilou cânticos religiosos (boa parte coletados por Santo Ambrósio), que ficou conhecido como “Antifonário de Cantos Gregorianos”. O termo “canto gregoriano” passou a ser sinônimo de cantochão, tamanha a sua popularidade.
As melodias gregorianas ou no estilo cantochão eram assim denominadas por sua natureza linear, pouco se afastando da linha determinada como base (ou “chão”) da estrutura melódica.
A melodia que habitualmente veste as palavras do canto gregoriano segue uma tênue ondulação melódica, em total consonância com os dizeres do poema religioso. A palavra conduz a melodia que pontua com pequenos intervalos ascendentes e descendentes a semântica dos versos. Muito embora permaneça fiel aos ditames da palavra, a melodia delineia o caminho: a palavra sinaliza; a melodia determina…
Convém salientar que essa sólida comunhão entre TEXTO VERBAL E TEXTO MELÓDICO, estabelecida desde os primórdios, tem no cantochão uma de suas mais legítimas alianças.
Com as ideias inovadoras do Iluminismo, ocasião em que o homem abandona o teocentrismo da Idade Média e passa a exaltar seus próprios feitos, as artes vivenciam um processo gradativo de dissociação — à medida que os conhecimentos são aprofundados, vindo à tona nuances significativas das várias linguagens artísticas, ocorre uma visível fragmentação das artes. O homem vislumbra a luz gradativa do saber, mas, em contraponto, deixa-se ofuscar por esse brilho excessivo, resultando numa espécie de miopia panorâmica, que em nada favorece a primitiva visão holística dos gregos.
No entanto, no que diz respeito ao vínculo música e literatura, a vertiginosa evolução não sombreia a cumplicidade dessas duas linguagens. Música e literatura continuam interagindo, em permanente diálogo… um constante exercício de envolvimento e completude.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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16. PORCHER, Louis. Educação artística: luxo ou necessidade? São Paulo: Summus, 1982.
17. SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982.
Por ELVIRA DRUMMOND