1- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A trova, muito provavelmente, é o primeiro gênero poético vivenciado por incontáveis gerações. Nosso cancioneiro folclórico infantil é constituído, sobretudo, de trovas, indo desde os acalantos (canções de berço), passando pelas cantigas de roda (folguedos praticados em círculos e em marchas), e abraçando, também, os cânticos religiosos que integram o repertório tradicional infantil.
A concisão semântica da trova, cujo formato expõe em apenas quatro versos heptassílabos um enredo completo, comunga perfeitamente com os anseios e expectativas das crianças, afeitas às mensagens curtas, fantasiosas e poéticas.
A carga de lirismo e poeticidade faz parte do imaginário infantil que costuma vestir as cenas do cotidiano com sua natureza de poeta. Carlos Drummond de Andrade reconhece o talento natural das crianças para a poesia e, em seu artigo “A educação do ser poético”, questiona: “Por que motivo as crianças de modo geral são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?”. (Apud. BORDINI, 1986: 55).
A trova tem sua origem na Idade Média, com os trovadores e menestréis que a usavam, sobretudo, em estribilhos destacados de maneira enfática, por vezes, suscitando e oportunizando a participação da plateia.
Esse formato foi cristalizado no tempo e se faz presente em boa parte do repertório das cantigas de roda. O refrão é significativo, nos brinquedos infantis cantados, consagrando um padrão que permeia desde o folclore ao repertório erudito, em que a orquestra alterna momentos de “solo e Tutti” (denominações italianas para designar trechos de destaque individual e trechos em que todos executam abrilhantando o refrão).
Segismundo Spina, em seu estudo intitulado “Na madrugada das formas poéticas”, sugere ser a repetição o principal elemento, nas artes fonéticas. O texto poético, uma vez vinculado à melodia, era denominado de poesia estrófica, e exigia, por determinação do canto, absoluta regularidade métrica, mantendo a divisão dos versos em grupos com a mesma contagem silábica, retornando com frequência ao ponto inicial — razão pela qual o conjunto de versos se chamou estrofe (do grego “strophê”, que significa ação de voltar).
A métrica frequente nesse padrão de agrupamento estrófico era a redondilha (maior ou menor). Segundo Spina, “O redondilho da poesia Ibérica é a forma de verso mais espontânea de toda versificação peninsular. É o metro que corresponde à melodia natural das línguas hispânicas (o português, o galego e o espanhol)”. (SPINA, 1982: 62).
Convém salientar que as trovas presentes nas cantigas de roda adotam o esquema rímico simples, ou seja ABCB, em que o 2° verso rima com o 4º (dispensando a rima entre 1° e 3° verso). Esse padrão de rima simples é plenamente justificável e compatível, em se tratando da comunhão letra e melodia, como ocorre no cancioneiro infantil, cabendo, aqui, maior esclarecimento quanto ao discurso musical que muito se assemelha ao discurso literário.
Do mesmo modo que um conjunto de frases forma um período na linguagem literária, no texto musical, a cada duas frases, temos um período completo; portanto, uma estrofe de quatro versos apresenta duas frases musicais, em que cada frase se divide ao meio, sendo suas metades denominadas de semifrase. Exemplificando, segue a acomodação das frases, na conhecida canção “As mentiras da barata”:
A barata diz que tem (1ª semifrase da frase A)
sete saias de filó, (2ª semifrase da frase A)
é mentira da barata, (1ª semifrase da frase B)
ela tem é uma só. (2ª semifrase da frase B)
Fica claro que a trova, uma vez musicada, segue o fraseio da melodia, utilizando a rima como meio de pontuar os finais de frases, e não os finais de versos. A divisão da frase em sua metade, formatando o tecido musical em subdivisões binárias, tem origem remota, mantendo as raízes na cultura da Antiguidade Clássica. A comunhão das três linguagens — música, poesia e dança — foi o farol que iluminou a arte desse período da história, em que os gregos apresentam uma visão holística, mostrando que a arte nasceu do abraço que envolve diversas manifestações do espírito humano.
A música, cuja denominação tem origem no termo “arte das musas”, sempre foi o fio condutor para as demais linguagens: um convite à dança, um apoio ao texto literário e um apelo à expressão dramática. Essa dimensão acolhedora (própria da linha melódica) justifica plenamente a configuração das cantigas de roda, que aglutina em seu discurso a linguagem melódica, a linguagem textual e a linguagem gestual.
Vale aqui salientar o papel fundamental da dança, no entrelace das artes, visto que toda movimentação corporal era mediada em binário, de maneira totalmente simétrica. De modo que dois passos para a direita eram seguidos de dois para a esquerda; se quatro passos para a direita, obrigatoriamente teríamos quatro para a esquerda, estabelecendo uma correspondência perfeita de todos os gestos da dinâmica corporal.
Essa equivalência simétrica com base na medida binária é denominada de quadratura musical. Conforme o Dicionário de Música, denominamos de “quadratura musical o princípio que estabelece a simetria da frase musical mediante a divisão desta em fragmentos de igual duração “. (BORBA; GRAÇA, 1962: 417).
A partir da denominação “quadratura musical” fica fácil compreender a associação com o termo “quadra” ou “quadrinha”, conforme a trova é nomeada em Portugal. Aqui, no Brasil, conhecemos as quadrinhas portuguesas como trovas, lembrando que, para nós, toda trova é uma quadrinha, mas nem toda quadrinha é uma trova. Isso porque podemos ter quadrinhas com metros que fogem ao padrão da redondilha maior — condição “sine qua non” para a quadra ser classificada como trova.
Com base na analise do conjunto de cantigas coletadas ao longo do tempo, considerando o registro de diversos pesquisadores, podemos apontar três diferentes fontes de onde parece surgir o grande corpus das cantigas de roda. Esse tripé nos permite rastrear uma espécie de árvore genealógica das cantigas em questão. Mapeamos, portanto, três vertentes de onde provém o vasto repertório de nossas cantigas de roda, ou seja, os três vieses que assinalam seu nascedouro: a narrativa, a dança e o jogo.
2- A NARRATIVA NAS TROVAS DO CANCIONEIRO
Na Idade Média, denominava-se “romance” o gênero que caracterizava as narrativas cantadas por trovadores e menestréis. Tais narrativas circulavam nas cortes e saraus medievais, migrando, por vezes, para feiras e praças com o intuito de divertir o povo.
Com o tempo, boa parte desses relatos cantados foram se perdendo, ficando apenas fragmentos de tais romances que sobrevivem entre nós em forma de cantiga de roda. Várias canções são moldadas com base nesse padrão, a exemplo de: “A linda rosa juvenil”, “Onde está a Margarida?”, “La Condessa”, dentre outras.
Nesse grupo, uma das mais conhecidas, de ponta a ponta do país, é “Terezinha de Jesus” — canção de caráter narrativo que, logo em sua primeira estrofe, enumera o elenco masculino significativo na vida de toda menina: o pai, o irmão e o escolhido para casar. As três figuras masculinas, inevitavelmente, terão papéis expressivos, norteando e intervindo nas várias etapas da vida de toda menina.
Altimar Pimentel, cuja vasta pesquisa tem importância relevante no estudo do folclore brasileiro, sobretudo, nos gêneros contos e cantos, menciona essa ronda apontando sua significância:
“Trata-se de uma das rondas mais conhecidas e amadas em todo o Brasil. Preferência que corrobora, com muita clareza, com o significado desses cantos na formação da criança, pois eles revelam didaticamente à menina todo o processo evolutivo por que passará até tornar-se moça e casar-se”. (PIMENTEL; PIMENTEL. 2004: 19).
A personagem Terezinha de Jesus, acudida por três cavalheiros, cuja cortesia e educação fica evidenciada pela atitude do “chapéu na mão” (gesto que sinaliza respeito), porta-se de modo bastante conveniente: dispensa a ajuda do pai e do irmão, de quem já conquistou o afeto, e estende a mão para aquele com quem deseja criar laços, com possibilidade de ser seu futuro pretendente.
“Terezinha de Jesus” pertence ao ciclo amoroso — temática preponderante no cancioneiro tradicional — trata-se de uma narrativa contada e cantada em trovas de rima simples (o padrão usual, nas cantigas de roda). O registro a seguir faz parte das minhas memórias de infância, sendo exatamente o mesmo encontrado em inúmeras coletâneas:
TEREZINHA DE JESUS
(folclore brasileiro)
I.
Terezinha de Jesus,
De uma queda foi ao chão.
Acudiu três cavalheiros,
Todos três chapéu na mão.
II.
O primeiro foi seu pai,
O segundo, seu irmão.
O terceiro foi aquele
Que a Tereza deu a mão.
III.
Terezinha levantou-se,
Levantou-se lá do chão.
E sorrindo, disse ao noivo:
Eu te dou meu coração!
IV.
Tanta laranja madura,
Tanto limão pelo chão.
Tanto sangue derramado
Dentro do meu coração.
V.
Da laranja quero um gomo,
Do limão quero um pedaço.
Da menina mais bonita
Quero um beijo e um abraço.
3- A DANÇA NAS TROVAS DO CANCIONEIRO
Nosso cancioneiro tradicional sinaliza outra forte procedência: a dança que, assim como o romanceiro, veio transferida da cultura adulta para a infantil.
Inúmeras são as canções do nosso repertório folclórico que se caracterizam como o gênero dança, em que os participantes da roda realizam requebros e meneios corporais, destacando células rítmicas com batimentos de pés e de mãos. Podemos exemplificar, citando: “Samba-lelê”, “Fui à Espanha”, “Sai, piaba”, “Vai, abóbora”, dentre outras…
Vale aqui destacar “Caranguejo” — uma das mais difundidas cantigas de roda, que provém de antigos bailados. Saída dos salões, em que adultos cantavam e dançavam como forma de lazer até meados do século XIX, veio para espaços abertos, fortalecida com as cores da infância, na categoria de brinquedo cantado.
Segundo Veríssimo de Melo, “Caranguejo” é uma chula. Sobre a chula, nos fala Renato de Almeida:
“As chulas são canções coreográficas, em modo maior e compasso binário, dançada por par solto, com estalos de dedos. (…) A melodia é viva e langorosa, o ritmo perfeitamente negro, cadenciado, servindo para a dança… (Apud. MELO. 1985: 228).
Assim como “Caranguejo”, diversas são as melodias provenientes de antigas danças, que se perpetuaram nas rodas das cirandas infantis. Elas insinuam e sinalizam o caráter dançante, uma vez que solicitam, no próprio texto verbal, movimentos corporais e marcações rítmicas destacadas com batimentos corporais.
A cantiga “Caranguejo” consiste em um conjunto de trovas acompanhadas de gestos e batimentos corporais, enfatizando o aspecto rítmico da canção. O registro a seguir faz parte das minhas memórias de infância, sendo coletado com pequenas variações por diversos pesquisadores. Vale salientar que a primeira trova é recorrente na grande maioria das versões, praticamente invariável:
CARANGUEJO
(folclore brasileiro)
Caranguejo não é peixe,
Caranguejo peixe é.
Caranguejo só é peixe
Na enchente da maré.
Bate palma, palma, palma.
Bate o pé, o pé, o pé.
Caranguejo só é peixe
Na enchente da maré.
Caranguejo é presidente,
Goiamum é capitão.
Aratu por mais pequeno,
Inspetor de quarteirão.
PS. Convém salientar alguns desdobramentos silábicos comuns à melodia, a exemplo do 4° verso da primeira e da segunda estrofe, em que a elisão natural “Na en-” não é feita pela força da estrutura melódica.
4- O JOGO NAS TROVAS DO CANCIONEIRO
Além do romanceiro e das danças, as cantigas de roda, por vezes, derivam de jogos — desafios praticados por adultos, no passado, e que caíram no gosto infantil. Ao migrar para o território da infância, o jogo adquire característica própria, assimilado e adaptado conforme a conveniência dos pequenos…
O poeta, sociólogo e ensaísta literário português Teófilo Braga — grande estudioso da cultura popular — comenta em sua obra “Jogos Populares Infantis”:
“Os jogos infantis têm dupla origem; uns são atos tradicionais, que se praticam pela persistência dos costumes, quando já não correspondem efetivamente ao estado social que os produzira: tais são os símbolos e certas cerimônias que acompanham ainda os casamentos; outros são a imitação de atos que se praticaram e que se repetem para glorificação ou para perpetuar a memória. É por isso que os jogos populares semelham batalhas, assaltos de pontes, ataques contra grandes monstros, paradas triunfais… (BRAGA. 1881: 343).
As cantigas de roda aparentadas de jogos infantis preservam o caráter de jogo através do tom de desafio. São elas brincadeiras cantadas que testam algum tipo de habilidade, seja a destreza motora, a capacidade de percepção visual (com o intuito de detectar algo) ou, até mesmo, jogos de sorte, que independe de qualquer atenção ou empenho.
Inúmeras canções de roda destacam um elemento do grupo, o qual será posto à prova; uma vez vencendo o desafio, apontará um substituto para ocupar sua função na brincadeira. Caso contrário, será punido “pagando uma prenda”, que consiste em uma prova de habilidade secundária, isto é, o elemento destacado deverá executar uma tarefa como cantar, dançar, recitar um verso — uma chance de se redimir com o grupo.
O brinquedo do limão classifica-se como jogo cantado, uma vez que tem como objetivo desafiar o elemento que está no centro da roda. O jogo consiste em desafiá-lo a apontar com quem está o limão, à medida que a canção é cantada e que o limão circula na roda, mudando de dono. Para isso, conta-se com a habilidade do grupo em passar o objeto (de preferência, um limão mesmo) sem que o elemento do centro da roda perceba; ao final da melodia, ele dará seu palpite, tendo direito a três tentativas. Caso erre as três, pagará uma prenda.
O LIMÃO
(folclore brasileiro)
O limão entrou na roda
e passa de mão em mão…
ele ainda não chegou
lá no meio do salão!
5- O ENCANTAMENTO POÉTICO DAS TROVAS EM NOSSO CANCIONEIRO
Embora o esquema rímico usual das trovas cantadas (considerando o repertório folclórico) seja o padrão de rima simples (2° e 4° versos), há algumas exceções, em que a rima dupla aparece, como no exemplo a seguir (muito embora, entre o 1° e 3° versos haja diferença quanto ao número: plural / singular):
MEIAS DE LUZ
(folclore brasileiro)
Nossa Senhora faz meias,
a linha é feita de luz;
o novelo é a lua cheia,
as meias são pra Jesus.
É admirável a carga poética dessa trova repleta de imagens metafóricas, aludindo o raio de luz à linha e a lua (provavelmente, cheia) ao novelo… O texto primoroso traz a presença de Nossa Senhora — modelo de mãe — e Seu bebê: o próprio Menino Jesus.
A delicadeza da linha melódica funciona como um envolvente manto de ternura em compasso binário — um compasso afeito ao movimento de balanceio — bastante apropriado para embalar um bebê, uma vez que o remete à vida uterina, quando vivenciava o mesmo movimento, por ocasião do caminhar da mãe.
A poeticidade dos versos, uma vez somada à atmosfera sublime da melodia, consolida uma aliança de especial qualidade estética.
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
As trovas literárias são naturalmente apreciadas por seu alto grau de lirismo e poeticidade ou, claro, pelo fino humor. A engenhosidade fica por conta do elevado poder de concisão que exalta, de modo especial, o caráter da trova, seja ela lírica ou humorística. O poeta conta apenas com quatro versos para expor seu lirismo ou sua capacidade de contar uma piada (categoria de humor).
Neste breve artigo, as trovas são apresentadas com outro viés, ou seja, viram brinquedos para se cantar contando histórias, dançando ou propondo desafios aos companheiros.
É notória a importância e a presença da trova na história cultural de nosso povo, que a vivencia desde os primeiros anos de vida, o que nos leva a acreditar que todos nós trazemos a trova na alma…
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
- ARAUJO, Alceu de Maynard; ARICÓ, Júnior. Cem Melodias folclóricas — Documentário Musical Nordestino. São Paulo: Ricordi, 1957.
- BORBA,Tomás & GRAÇA, Fernando L. Dicionário de Música. Lisboa: Cosmos, 1962.
- BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986.
- BRAGA, Teófilo. Os jogos populares e infantis. Era nova — Revista do Movimento Contemporâneo. Lisboa: 1980-1981.
- BROUGÉRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 2001.
- CASCUDO. Câmera. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1980.
- CASTRO, Zaïde Maciel de. Jogos e Rondas Infantis. Serviço Social da Indústria (SESI), 1967.
- DRUMMOND, Elvira. Cantigas de Roda — sem prazo de validade, com selo de eternidade. Fortaleza: LMiranda, 2020.
- FERNANDES, Florestan. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1961.
- HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1993.
- MELO, Veríssimo de. Folclore Infantil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
- NERO, Carlos del. Acalantos e cantigas de um folclore tenebroso. São Paulo: Revista dos Arquivos Municipal, vol. 171 — separata [s/d].
- NETTI, Paul. La música e la danza. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1945.
- NOVAES, Iris Costa. Brincando de Roda. Rio de Janeiro: Liv. Agir, 1960.
- PIMENTEL, Altimar de Alencar; PIMENTEL, Cleide Rocha de Alencar. Esquindô-lê-lê – cantigas de roda. João Pessoa: UFPB, 2004.
- SPINA. Segismundo. Na Madrugada das Formas Poéticas. São Paulo: Ática, 1982.
- RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
- STEWART, R. J. Música e psique. São Paulo: Círculo do Livro, 1981.
- VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
- WILLEMS, Edgar. As bases psicológicas da educação musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970.
- WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Cantigas de ninar de todo o mundo. Porto Alegre: Ed. Magister, 1995.
- ZIRALDO. Acalantos. Rio de Janeiro: EMC, 1998.
Por ELVIRA DRUMMOND