É com prazer que trago para nossa coluna MÚSICA E LITERATURA EM DIÁLOGO uma entrevista com Tom Drummond (meu filho), uma vez que seu trabalho constitui um exemplo expressivo de comunhão entre música e literatura. Seguem, portanto, perguntas que oportunizam o leitor conhecer um pouco da trajetória melodiosa desse jovem compositor.
Tom Drummond — compositor, cantor e multiinstrumentista — nasceu em 1987, em Manaus. Filho de pais cearenses, com apenas um ano de idade veio para Fortaleza-CE, onde passou sua infância e adolescência. Apesar de muito jovem, conta com um número significativo de composições, tendo sete álbuns gravados e inúmeros prêmios conquistados.
Tom é violoncelista da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Paraíba (OSUFPB) e, atualmente, mestrando no curso de Composição da mesma Universidade. A prática como violoncelista da OSUFPB abraça seu trabalho autoral de MPB — si-tuação em que ele próprio reescreve seu repertório para orquestra, resultando em shows que mesclam a linguagem popular e erudita.
ENTREVISTA
1
REVISTA THE BARD – A música entrou na sua vida desde a mais tenra idade. O que significou para você essa etapa preliminar?
TOM DRUMMOND – Eu não diria que minha introdução no mundo da música pode ser consi-derada preliminar. Uma das grandezas do processo de musicalização pelo qual passei é enfatizar o processo criativo, dar ao iniciante uma série de ferramentas e lhe pedir que as utilize da maneira que mais lhe interesse não pode ser chamada de preliminar. Desde cedo me sinto fazendo música e aprendendo com esse processo. Dito isso, há uma grande diferença no meu processo de musicalização: ele foi realizado dentro de casa. Eu tive a sorte de frequentar um conservatório quando pequeno, mas de fato a partilha da música e da criação musical com meus familiares proporcionou um ambiente que, sem-pre pontuado com sons, me é muito caro, definindo meu caminho, meus sonhos e minha profissão.
2
REVISTA THE BARD – Cabe, aqui, destacar uma peculiaridade sua: a generosidade e o cuidado para com sua irmã, durante nossas execuções musicais; sendo o irmão mais velho (com diferença de cinco anos), você não apenas seguia minha orientação, mas, também, aten-tava para a performance de sua irmã, o que fez com que, precocemente, exercitasse um viés didático, em sua prática musical. Penso que essa conduta lhe rendeu frutos, na vida adulta. Vejo seu projeto OSUFPB PARA CRIANÇAS como uma centelha do didatismo generoso praticado na infância. Voltaremos a falar sobre esse projeto, no final de nossa conversa.
Como você vê o diálogo música e literatura em suas composições?
TOM DRUMMOND – A relação entre letra (texto verbal) e música (texto melódico) é bem docu-mentada, ao longo da história. Por várias vezes, os compositores reorganizaram a hie-rarquia entre esses dois elementos, mas sempre procuraram o equilíbrio, e esse me pare-ce ser o objetivo maior de uma canção: a capacidade de adequar de forma orgânica letra e música de maneira que pareçam inseparáveis, indivisíveis. Meu objetivo está nessa adequação.
3
REVISTA THE BARD – Em 2010, você obteve o 1° lugar no I Festival de Música da Rádio Uni-versitária FM, na categoria Música com Letra, com a canção “Seu Santo” — canção que utiliza a linguagem modal (típica da música nordestina) e um conjunto de anáforas que estabelece uma perfeita relação entre texto verbal e texto melódico. Fale um pouco sobre o processo de construção de “Seu Santo”.
TOM DRUMMOND – Muito me interessa falar sobre o nordeste, é o que chamo de casa, desde de que me entendo por gente. No entanto, o que mais me encanta no Nordeste não é a sua geografia, e sim quem lá habita. “Seu Santo” foi feito pensando em expressar a relação do povo nordestino e sua fé. Essa relação cristã vinda de tradição europeia sempre me pareceu transformada, onde moro (Fortaleza, a princípio, e, atualmente, João Pessoa). Existe uma relação de respeito, claro, mas também de proximidade, cumplicidade com o plano superior. Acredito que esse elemento saltou aos olhos dos jurados, fazendo com que minha canção se destacasse.
4
REVISTA THE BARD – Sem dúvida, você foi bastante assertivo em sua exposição mística — conduta relevante para a classificação obtida — mas gostaria de também salientar o uso oportuno e significativo das anáforas (repetição recorrente de um vocábulo ou termo, pontuando o início de versos ou estrofes). As anáforas presentes no texto verbal (“Seu Santo”) estabelecem perfeita equivalência com o texto melódico, fazendo corresponder a repetição de palavras com a repetição de notas, tanto no início das estrofes, quanto no refrão, em que você destaca o termo (Seu Santo) de maneira enfática. Essa conduta proporciona grande coesão à peça, além de bastante engenhosa.
TOM DRUMMOND –
SEU SANTO
Tom Drummond
Seu santo me salva da peia,
Boi da cara feia que quer me pegar
Me salva o pé de goiabeira
Pra que a brincadeira não possa parar
Seu santo me ensina a ciranda
Que vontade manda só rodopiar
Não deixa levar mais sermão
Nem perder meu pião que é tão bom de rodar
Seu santo, é tão bom de rodar.
Seu santo, é tão bom de rodar.
Seu santo, é tão bom de rodar.
Seu santo, é tão bom de rodar.
Seu santo, não xinga o xote, xaxado
Que faz todo mundo dançar,
Me salva a zabumba e a bebida
Pra bem colorida a noite ficar.
Seu santo, me salva a cabocla.
Do beijo da boca de maracujá,
A minha riqueza que é pouca
Mas com aquela moça qu’eu quero casar…
Seu santo, que eu quero casar.
Seu santo, que eu quero casar.
Seu santo, que eu quero casar.
Seu santo, que eu quero casar.
Seu santo, abençoa essa enxada
Que a terra rachada é difícil de arar,
Me ajuda com essa colheita
Eu tenho três filhos pra alimentar.
Seu santo, a vaca tá mucha,
A casa, coitada, tá pra desabar…
Me ajuda que eu tenho três filhos
E olha quarto já ta pra chegar…
Seu santo, já ta pra chegar.
Seu santo, já ta pra chegar.
Seu santo, já ta pra chegar.
Seu santo, já ta pra chegar.
Seu santo, protege esse rosto
Que tanto desgosto insiste em marcar,
Me cura do medo da morte
Pra vida ter sorte de continuar.
Seu santo o tempo não falha,
A minha mortalha não tarda chegar
Repara nos filhos que deixo,
Assim meu desfecho é um recomeçar…
Seu santo, é um recomeçar.
Seu santo, é um recomeçar.
Seu santo, é um recomeçar.
Seu santo, é um recomeçar.
5
REVISTA THE BARD – A mesma linguagem modal você utiliza em “Capitu” — canção que ob-teve 2° lugar no Festival de Música da Paraíba, em 2019, e que tem como base a perso-nagem machadiana da obra Dom Casmurro, retratando minúcias sensíveis do universo feminino. Comente sobre a ponte: inspiração musical / universo literário.
TOM DRUMMOND – Na época de escola, confesso que muitos dos livros que a escola exigia pa-ra leitura eram insuportáveis. Alguns, distantes de mim pela temática; outros, com um vocabulário que tende para o português arcaico. No entanto, dois livros fugiram à regra: Dom Casmurro (Machado de Assis) e Capitães de Areia (Jorge Amado). A figura de Capitu me encantava… todo garoto já teve uma paixão por uma garota daquele jeito: do-na de si. Decidi fazer uma música com esse tema. E acho que fui feliz na melodia e nos argumentos que a letra propôs ao ouvinte. Muito carinho por essa canção.
6
REVISTA THE BARD – Sim, argumentos e conduta melódica em perfeita harmonia. Vale, no en-tanto, ressaltar um procedimento que considero pouco usual, no repertório popular, mas percebo como recorrente em seu processo criativo. Trata-se do que poderíamos denomi-nar de “crase vocabular” — uma sobreposição de termos consecutivos iguais, em que um deles é omitido. Tal como acontece com a + a, em que temos simplesmente à (ou e + e, que resulta em apenas um “e”), você utiliza o vocábulo “meu” com o intuito de fi-nalizar o verso: “não tem nó maior que o meu”, valendo-se do mesmo vocábulo (que aparece entre parêntese) para iniciar o verso seguinte, sem no entanto mencioná-lo: “(Meu) querer é teu olhar de Capitu”… Esse procedimento singulariza e enriquece a obra.
TOM DRUMMOND –
CAPITU
Tom Drummond
Meu querer é teu olhar de Capitu
Pra ter o que na vida desvendar,
Viver toda incerteza que os teus olhos
São capazes de inventar…
Eu, que sou namorador
E muita moça já roubei do par,
A cada noite outro alguém amei,
Mas falta em tudo que encontrei
O que pertence ao teu olhar.
Deixa…
Deixa no meu peito o teu nó,
Todo nó bem dado ao coração,
Doa a quem doer,
Queima igual brasão
Faz do meu pedido a tua deixa…
Deixa no meu peito o teu nó,
Todo nó bem dado ao coração,
Doa a quem doer,
Mas quem do amor fugiu
Jamais viveu,
Agora se prepare não tem nó pior que o meu…
(Meu) querer é teu olhar de Capitu
Pra ter o que na vida desvendar,
Viver toda incerteza que os teus olhos
São capazes de inventar…
Eu, que sou namorador
E muita moça já roubei do par,
A cada noite outro alguém amei,
Mas falta em tudo que encontrei
O que pertence ao teu olhar.
Deixa…
Deixa no meu peito o teu nó,
Todo nó bem dado ao coração,
Doa a quem doer,
Queima igual brasão,
Faz do meu pedido a tua deixa…
Deixa no meu peito o teu nó,
Todo nó bem dado ao coração,
Doa a quem doer,
Mas quem do amor fugiu
Jamais viveu,
Agora se prepare não tem nó pior que o meu…
(Meu) querer é teu olhar de Capitu
Pra ter o que na vida desvendar,
Viver toda incerteza que os teus olhos
São capazes de inventar…
Eu, que sou namorador
E muita moça já roubei do par,
A cada noite outro alguém amei,
Mas falta em tudo que encontrei
O que pertence ao teu olhar.
7
REVISTA THE BARD – A conexão harmoniosa entre texto verbal e texto melódico é visível, no seu trabalho. Em “Menino Bonito” — canção classificada em 1° lugar no I Festival de Música de Fortaleza, em 2018 — você trata o vocativo “Ô menino bonito” (recorrente em toda a peça), com uma linha melódica muito próxima à inflexão natural da fala. Fale um pouco desse processo.
TOM DRUMMOND – Desde de cedo escrevi músicas para um eu lírico feminino por ter minha irmã, cantora e instrumentista, ao meu lado desde sempre. Nesse momento de minha carreira me interessava misturar instrumentos sinfônicos com a MPB. Obviamente não fui o primeiro a realizar tal mistura, mas me orgulho do resultado. A utilização do quin-teto de madeiras deu à canção a intimidade que a letra havia proposto, quando limitada apenas à voz e ao violão. Outra alegria para mim.
8
REVISTA THE BARD – Além do resultado harmonioso — fruto de sua orquestração — é opor-tuno salientar a conduta melódica absolutamente coerente com o texto verbal. Penso que você escuta a melodia em estado embrionário que existe em nossa voz falada e, sim-plesmente, converte a fala em intervalos musicais. Esse procedimento dá tamanha natu-ralidade ao discurso melódico, que resulta em perfeita comunhão entre letra e melodia.
TOM DRUMMOND –
MENINO BONITO
Tom Drummond
Ô menino bonito,
Que me apareceu,
Como a vida seria
Se tu fosse só meu…
Eu vim de onde toda alegria
Nasce e morre no breu,
Mas toda tristeza feita de mim
Faz de ti razão para um adeus.
Eu que agora inventei de sorrir,
Eu que agora inventei de cantar,
Ô menino bonito,
Quanta moça já quis te namorar.
Desde ti fui do vento,
Me levei com a maré,
Ô menino bonito,
Faz de mim bem me quer,
Me diz no que eu nem acredito,
Mas aguardo com fé,
Eu vivo apressando o tempo
Pra o tempo parar de vez, se Deus quiser…
Eu que agora inventei de sorrir,
Eu que agora inventei de cantar,
Ô menino bonito,
Quanta moça já quis te namorar.
Descumpri meu silêncio
Para não viver
Entre o agora e nunca mais,
Sei do que dom
Que qualquer boa moça tem
De esperar um bom rapaz,
Mas já me basta os segredos que eu fiz de mim,
Já não cabem os segredos que em mim guardei.
De cada abismo que a vida encontrou fugi,
Mas pensar que eu serei sem ti,
Me desfiz da certeza
E me atirei…
Ô menino bonito,
Que me apareceu,
Como a vida seria
Se tu fosse só meu…
Eu vim de onde toda alegria
Nasce e morre no breu,
Mas toda tristeza feita de mim
Faz de ti razão para um adeus.
Eu que agora inventei de sorrir,
Eu que agora inventei de cantar,
Ô menino bonito,
Quanta moça já quis te namorar.
9
REVISTA THE BARD – A música “Libertália”, uma das vencedoras do VII Prémio Internacional IberMúsicas — Canciones da la Cuarentena, estabelece uma coesão singular entre letra e música, abordando um tema de especial relevância, sobretudo, naquela ocasião. O que você tem a dizer sobre essa experiência?
TOM DRUMMOND – Libertalia nasce em um momento turvo, na pandemia. A sensação de ina-dequação, de se sentir só, distante, não pertencente ao todo fez eclodir essa canção. Em-bora, ao contrário de toda a instrumentação utilizada em Menino Bonito, Libertália te-nha sido gravada só por mim e, posteriormente, em parceria com Italo Rafael (violonce-lista), gosto de como o som do violoncelo ressoa e contracena com a melancolia da letra.
10
REVISTA THE BARD – A orquestração ressalta o caráter intimista da peça, em total coerência com o contexto. Destaco, também, as modulações recorrentes no discurso melódico, com tal riqueza harmônica que me lembra Schumann.
TOM DRUMMOND –
LIBERTÁLIA
Tom Drummond
Calar de si verdade por contar,
Deixar seguir o mundo e mais do mesmo.
Não ser daqui ou de nenhum lugar,
Se descobrir por vasto e vão segredo.
Desamparar de quem pertence a ti,
Se deslumbrar com fim do próprio enredo,
Quando então reflete o corpo
Que se faz sentir…
Calar de si verdade por contar,
Deixar seguir o mundo e mais do mesmo,
Não ser daqui ou de nenhum lugar,
Se descobrir por vasto e vão segredo.
Desamparar de quem pertence a ti,
Se deslumbrar com o fim do próprio enredo,
Quando então reflete o corpo
Que te faz sentir de mim,
Que essa pele faz fronteira
Tudo o que é redor,
Que esse peito é desacordo a vida que eu levei,
Mas se o destino me resguarda
No adiante a liberdade enfim,
Livre, então serei…
Liberdade enfim,
Livre, então serei…
Calar de si verdade por contar,
Deixar seguir o mundo e mais do mesmo,
Não ser daqui ou de nenhum lugar,
Se descobrir por vasto e vão segredo,
Desamparar de quem pertence a ti,
Se deslumbrar com fim do próprio enredo,
Quando então reflete o corpo
Que se faz sentir de mim,
Que essa pele faz fronteira
Tudo o que é redor,
Que esse peito é desacordo a vida que eu levei,
Mas se o destino me resguarda
No adiante a liberdade enfim,
Livre, então serei…
Liberdade enfim,
Livre, então serei…
11
REVISTA THE BARD – Para finalizar, gostaria que comentasse sobre seu projeto didático OSUFPB PARA CRIANÇAS.
TOM DRUMMOND – O projeto remete ao meu processo de aprendizagem. Acredito que, com poucas ferramentas, o iniciante já pode participar do processo musical, ora analisando a escuta e reproduzindo modelos; ora criando…
Minha sorte e diferencial é participar de um conjunto orquestral — a OSUFPB — disposto a partilhar desse momento em que as crianças conhecem uma orquestra, brincando e criando com ela.
Por ELVIRA DRUMMOND