- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A epístola nos remete aos primórdios, com magnânima relevância no processo de comunicação. De acordo com o Dicionário de Termos Literários, a palavra “epístola” vem do grego “epistolê” (em latim, “epístula”). Sinônimo de carta, é um gênero cultuado desde a Antiguidade Clássica. (MOISÉS, 1995, p. 192-193).
Analisando o termo quanto à sua etimologia, o vocábulo “epístola” é formado pelo prefixo grego “epi” (que significa por cima) mais o substantivo “stola” (que significa manta, ou seja, coberta). Essa formação é plenamente justificada pelo fato de que, na época da Igreja primitiva, as cartas eram colocadas em bolsos costurados nas duas extremidades de uma manta colocada sobre o lombo dos animais que transportavam cargas, sendo o jumento o mais usual. A epístola era, na verdade, o recipiente (ou bolso) que levava uma mensagem escrita ao destinatário. Já o termo sinônimo — carta — deve-se à troca do pergaminho pelo papel (em latim, “charte”).
Vale destacar que, durante a Antiguidade Clássica, a epístola assumiu um caráter diverso, indo dos textos com mensagens bíblicas, a exemplo das “Epístolas de São Paulo”, aos de composição poética, como um dos mais significativos legados da Antiguidade Clássica — Ars Poética, de Horácio — um tratado poético recheado de conceitos e ensinamentos sobre a linguagem da poesia. Na época, também circulava epístolas destinadas a amigos ou mecenas, versando sobre os mais variados assuntos: filosóficos, políticos, morais, amorosos…
Além da importância primordial para a escritura bíblica, o gênero, pouco presente em manifestações literárias da Idade Média, ressurge no Renascimento (por volta do século XVII) com força surpreendente, sendo essa escrita denominada de “romance epistolar”.
- O DIÁLOGO EPISTOLAR
O apelo ao diálogo, pressupondo a ausência do outro, é próprio na literatura do gênero epistolar, contudo, nem sempre é endereçada a um destinatário real. Trata-se, muitas vezes, de um formato instigante, em que o escritor idealiza um interlocutor (leitor imaginário) que receberá informações preciosas a respeito de temas, sobretudo, filosóficos e artísticos.
As “Cartas a Lucílio” (Epistulae Morales ad Lucilium) é uma das mais importantes obras de Sêneca (que viveu por volta de 4 a.C). O conjunto de 124 cartas constitui um singular legado escrito pelo grande filósofo durante o período de sua aposentadoria, tendo como pauta principal lições estóicas que, hipoteticamente, aconselhariam Lucilio — procurador da Sicília — um funcionário da Roma Antiga.
Convém destacar que o teor das “Cartas a Lucilio” vai muito além de situações específicas experimentadas na época; os temas abordados são de caráter profundo, filosófico, que parecem ter um alcance muito maior, com intenção de abraçar o mundo, fazendo da humanidade o grande e principal interlocutor…
Com ou sem destinatário definido, vale destacar que, na Pérsia antiga (500 a.C) já havia um correio com eficácia surpreendente, em que mensageiros montados a cavalo percorriam centenas de estações espalhadas pelo reino deixando e levando mensagens aos respectivos destinos.
No Brasil, os primeiros serviços postais datam de 1663, com a criação do Correio-mor, em que foram nomeados vários assistentes para atender as capitanias da América portuguesa, mas nossa atual estrutura de Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos — empresa pública federal — data de 1969.
Foi por ocasião do século XX, que a missiva nos moldes reais propagou-se entre escritores, resultando em ricos e valiosos diálogos no formato de cartas — um precioso legado, com qualidade estética e registro de época que ilustram de modo singular a história.
São vários os exemplos em nossa literatura brasileira, dentre eles: “A barca de Gleyre” (1948) que reúne a correspondência entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel — um conjunto de cartas que abordam a estética literária e questões culturais de natureza genuinamente brasileira. Nesse padrão de cartas, contamos com a presença mais intimista e pessoal, de ambas as partes. O endereço é assertivo (não mais hipotético) e, cada texto considera a resposta anterior do interlocutor.
- O SELO DO AFETO NA CORRESPONDÊNCIA FOLCLÓRICA
A escrita de uma carta tem a tinta da intimidade e é selada com o carimbo do afeto. A troca de cartas entre amigos, namorados e pessoas queridas em geral, ganham espaço e se tornam cada vez mais frequentes. A evocação do ausente, através da escrita, pressupondo o momento futuro da leitura tece uma ponte que oscila entre fantasia e realidade, porque, mesmo conhecendo o parceiro com quem se troca correspondência, as possíveis reações estão no plano do imaginário.
A troca de correspondência — situação frequente da vida real — logo passa para o universo das cantigas de roda, retratada através de melodias graciosas que vestem versos cheios de encantamento e paixão.
Um aspecto interessante do cancioneiro folclórico é que os textos que abordam a temática “cartas” fazem menção recorrente a uma ave como mensageira das missivas — uma alusão direta aos pombos-correios que, no contexto do nosso folclore, variam de espécie, passando a vestir a pele de papagaios, gaivotas, garças, andorinhas… todas elas, aves que voam levando notícias de amor aos casais apaixonados.
- MISSIVAS E MENSAGEIROS NO REPERTÓRIO FOLCLÓRICO
O papagaio, ave tipicamente brasileira (encontrado também em outros países da América do Sul) é o grande mensageiro na canção “Papagaio Louro”, que circula em todo território brasileiro, compondo diversas coletâneas de nosso acervo folclórico.
A melodia concisa e graciosa, constituída apenas de um período, se repete enquanto o texto verbal prossegue narrando o pedido ao papagaio mensageiro. Trata-se de uma cantiga de roda performática, em que as crianças cantam de mãos dadas, em círculo, mantendo no centro um elemento que cumpre o papel de “papagaio”. A figura do papagaio dança, no centro da roda, imitando com os braços o bater de asas, e, ao final da canção, se aproxima de uma das companheiras, fingindo entregar a “cartinha”. A criança que recebe a “carta” será a próxima a ocupar a função de papagaio, e o jogo recomeça…
PAPAGAIO LOURO
Papagaio louro
do bico dourado,
leva-me esta carta
ao meu namorado.
Ele não é frade,
nem homem casado;
é rapaz solteiro,
lindo como um cravo.
Se estiver dormindo,
bata lá na porta;
e se acordado,
deixe um recado…
PAPAGAIO LOIRO (2ª versão)
Papagaio loiro,
de bico doirado,
leva-me esta carta,
para o outro lado!
Para o outro lado,
para a outra margem,
papagaio loiro,
de linda plumagem!
De linda plumagem,
linda como oiro,
leva-me esta carta,
papagaio loiro!
A segunda versão de “Papagaio Loiro” pertence à tradição portuguesa. A espécie denominada de “papagaio-do-mar”, em passagem migratória pela Costa portuguesa é um verdadeiro espetáculo a ser apreciada, o que justifica o apreço dos portugueses pela ave.
A versão portuguesa da cantiga mantém exatamente a mesma linha melódica, diversificando apenas o texto verbal. Muito provavelmente, a versão portuguesa chegou ao Brasil, perpetuando a linha melódica de fácil memorização, enquanto o texto foi se aculturando ao território brasileiro.
Em outra canção, intitulada “Papagaio da pena verde”, o nosso louro brasileiro cumpre a função de mensageiro que precisa ser a ponte entre Mariquinha e seu namorado: “ou leva carta, ou traz carta / pro namorado da Mariquinha”. Assim termina a primeira estrofe da canção — uma intimação categórica — para que a comunicação entre Mariquinha e o namorado seja estabelecida. (LOUREIRO & TATIT: 2015: 14 e 15)
PAPAGAIO DA PENA VERDE
Papagaio da pena verde,
da janela da cozinha.
Ou leva carta ou traz carta,
pro namorado da Mariquinha.
Eu plantei caminha verde
com dois palmos de fundura,
mas, quando foi noutro dia,
já chupei cana madura.
A brincadeira prossegue com duas rodas (uma dentro da outra), girando em sentidos opostos. Nos versos 3 e 4 de cada estrofe, as crianças param uma de frente para outra (roda de dentro com roda de fora) e, de braços dados, giram. No início de cada estrofe, retomam a posição inicial e o jogo recomeça.
Cana-verde é uma dança de origem portuguesa que se popularizou em diversos estados brasileiros. É dançada aos pares e foi ganhando pequenas variantes, a medida que se propagou no território brasileiro.
A canção reúne dois elementos da cor verde: a cana e a pena do papagaio. É interessante a credibilidade dada a esses elementos, como se, ambos, tivessem poderes de solucionar problemas: o papagaio da pena verde pode restaurar o namoro da Mariquinha; a cana verde pode brotar com rapidez vertiginosa, para matar o desejo e a fome de quem planta.
Já a cantiga de roda “A pombinha voou…”, registrada em diversas coletâneas oriundas de várias regiões do país, traz a doce pombinha como personagem amorosa. Ela mesma deverá enviar mensagens para sua dona, que fica saudosa com sua partida. A dona da pombinha espera ansiosa por notícias e espera que sua avezinha cumpra a nobre missão dos pombos, ou seja, a missão de “pombo-correio”, desta feita, dando notícias dela própria… A letra da canção é um apelo para que a pombinha retorne ou mande notícias.
A brincadeira procede com as crianças em círculo, cantando de mãos dadas, tendo, ao centro, uma criança que faz o papel de pombinha. Ao final da canção, a “pombinha” escolhe alguém da roda para fazer a entrega da cartinha imaginária. A criança escolhida será a próxima a fazer o papel de pombinha, reiniciando a brincadeira. NOVAES, 1960: 22: QUEIROZ, 1987: 104; PIMENTEL & PIMENTEL, 2004: 93.
A POMBINHA VOOU…
Pombinha, quando tu fores,
me escrevas pelo caminho.
Se não encontrar papel,
nas asas de um passarinho.
Da boca, faz um tinteiro;
da língua, pena dourada;
dos dentes, letra miúda;
dos olhos, carta fechada.
A pombinha voou, voou…
ela foi-se embora e me deixou.
A pombinha voou, voou…
ela foi-se embora e me deixou
Em algumas coletâneas, encontramos o registro de melodia idêntica, em que o texto verbal apenas substitui a personagem “pombinha” por “menina”. Com a mudança de foco, a menina — personagem central da narrativa — deve mandar notícias através das asas de um passarinho, ou seja, ela deverá encontrar seu próprio “pombo-correio”. A última estrofe é suprimida, nessa versão, e a dinâmica da brincadeira é mantida tal qual a versão anterior. (NAIRZINHA, 2006: 61; MAFFIOLETTI & RODRIGUES, 1994: 67).
MENINA, QUANDO TU FORES…
Menina, quando tu fores,
me escrevas pelo caminho.
Se não achares papel,
nas asas de um passarinho.
Do bico, faz um tinteiro;
da língua, pena dourada;
dos dentes, letra miúda;
dos olhos, carta fechada.
Material igualmente interessante é o gênero “quadrinhas”, que, embora desprovidas de melodia, traz, em sua estrutura de versos heptassílabos absolutamente simétricos, uma melodia em estado embrionário. É um ótimo ponto de partida para se propor um exercício de composição, usando como referência o texto verbal das quadrinhas.
Há especial encantamento nesse gênero, nos remetendo a algumas imagens poéticas plenas de lirismo e destacando o significativo papel das cartas, em nossa vida amorosa.
QUADRINHAS
- Todas as tarde que vejo
gaivotas à beira-mar,
penso sempre que são cartas
que acabas de me mandar…
2. Com pena, peguei na pena,
com pena pra lhe escrever:
a pena ficou com pena,
com pena de não te ver…
3. Lá vem a garça voando
com duas penas no bico:
uma é pena de quem parte,
a outra é de mim que fico.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Convém salientar um elemento comum a todas as canções aqui citadas: o compasso binário. Seria alusivo ao movimento de bater as asas durante o voo? Estaria sugerindo as idas e voltas dos mensageiros? Ou, simplesmente, os batimentos cardíacos bem marcados dos corações apaixonados? Seja uma delas ou todas as alusões, são cabíveis em nossa leitura que destaca a paixão do ser humano pela carta — a tão aguardada notícia — que traz conforto e contentamento para a alma.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
- ARAUJO, Alceu de Maynard; ARICÓ, Júnior. Cem Melodias folclóricas — Documentário Musical Nordestino. São Paulo: Ricordi, 1957.
- BRAGA, Teófilo. Os jogos populares e infantis. Era nova — Revista do Movimento Contemporâneo. Lisboa: 1980-1981.
- BROUGÉRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 2001.
- Câmera. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1980.
- CASTRO, Zaïde Maciel de. Jogos e Rondas Infantis. Serviço Social da Indústria (SESI), 1967.
- FERNANDES, Florestan. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1961.
- HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1993.
- LOUREIRO, Maristela. TATIT, Ana. Para os Pequenos. São Paulo: Melhoramentos, 2015.
- MELO, Veríssimo de. Folclore Infantil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
- MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1990.
- NAIRZINHA, Cirandando Brasil. Salvador/BA: Editora Press Color, 2006.
- NERO, Carlos del. Acalantos e cantigas de um folclore tenebroso. São Paulo: Revista dos Arquivos Municipal, vol. 171 — separata [s/d].
- NOVAES, Iris Costa. Brincando de Roda. Rio de Janeiro: Liv. Agir, 1960.
- PIMENTEL, Altimar de Alencar; PIMENTEL, Cleide Rocha de Alencar. Esquindô-lê-lê – cantigas de roda. João Pessoa: UFPB, 2004.
- QUEIROZ, Mariza. Brincando de Roda — na escola e no lar. Curitiba/PR, Editora Musas, 1987.
- WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Cantigas de ninar de todo o mundo. Porto Alegre: Ed. Magister, 1995.
Por ELVIRA DRUMMOND