- Considerações Iniciais
Somos de descendência marinheira, nossos irmãos portugueses foram grandes navegadores. Talvez, por isso, carregamos o mar no coração. Coração existe para amar e para o mar… E, sendo o mar muito grande, costuma convidar o sol, a areia macia e a brisa… esse pacote de beleza é, de modo especial, privilégio dos brasileiros.
O mar foi nossa via de descobrimento, de colonização, de consolidação de nossa independência e, sob a perspectiva econômica, um percentual que atinge aproximada-mente 90% do comércio exterior brasileiro faz o traslado via marítima. O mar é, por-tanto, um viés significativo de nossa história.
Independente da importância histórica do mar para os brasileiros, vale salientar que mais de 70% do planeta é banhado por sua água. O mundo inteiro reconhece e reverencia o mar como fonte de vida suprema do planeta, e inúmeros projetos ambien-tais são administrados com o objetivo de preservação da flora e fauna marítima.
Todos esses aspectos, certamente, justificam o forte vínculo e o olhar sensível dos artistas, quando se trata do tema MAR! Um número significativo de músicas, consi-derando os gêneros folclórico, popular e erudito, destacam a temática do mar, recorrente no cancioneiro universal.
- O Tema Mar no Cancioneiro Folclórico:
No repertório folclórico brasileiro, cuja maior contribuição devemos aos irmãos portugueses, temos uma farta variedade de canções em que o mar — e todos os ele-mentos que constituem esse habitat — são exaltados através de um conjunto singu-laríssimo de rondas infantis.
As cantigas de rodas têm uma maneira muito especial de destacar a grandeza do mar, visto que estabelecem um vínculo entre melodia e brincadeira, suscitando dos participantes presteza, atenção e habilidade, na realização de cada um dos folguedos tradicionais da infância. Cada canção tem sua maneira própria de brincar, constituindo sempre um jogo que requer interação entre os brincantes, exaltando a temática da can-tiga, ora através de gestos; ora dançando e fazendo uso de palmas, batimentos de pés etc; ora em forma de jogos e diálogos entre os membros do grupo, tornando a brincadeira instigante e desafiadora.
Algumas dessas canções foram aqui reunidas formando uma espécie de SUÍTE DO MAR. A suíte é uma antiga forma musical, surgida por volta do século XIV, que constitui um conjunto de danças sequenciadas, sendo tocadas, imediatamente, uma após a outra.
No século XVIII, a suíte ganhou destaque, sobretudo, na França. A suíte clássica — bastante representativa dessa época — reunia as principais danças características desse período, tendo o cuidado de manter um contraste de caráter, entre uma peça e outra. De modo que era de bom tom alternar peças de andamento mais lento — de caráter mais nostálgico, melancólico — com peças de andamento mais rápido — de caráter vibrante e eufórico.
A partir do século XIX, o termo suíte liberta-se da dança e é usado para indicar uma seleção de trechos de obras grandiosas, a exemplo do Ballet e da Ópera, podendo ser tocadas sem a representação cênica, que tanto caracteriza o ballet quanto a ópera. Tal suíte tem como objetivo a valorização da música escrita para dois gêneros que pri-mam pelo aspecto visual, cuja beleza sonora é dividida no palco com a beleza plástica.
A suíte, no entanto, vem ampliando sua designação. O termo popularizou-se e, atualmente, é utilizado como sinônimo de conjunto de peças agrupadas por afinidades.
“Suíte do Mar” reúne três canções que exaltam o ambiente marítimo, portanto, o tema mar constitui a afinidade responsável pela junção das peças. Segue a referida suíte:
MARINHEIRO (1ª canção)
Marinheiro, encosta a barca,
que essa moça quer embarcar:
— Ai, ai, eu não sou daqui,
eu não sou daqui, eu sou do Pará.
— Ai, ai, eu não sou daqui,
eu não sou daqui, eu sou do Pará.
QUEM TE ENSINOU? (2ª canção)
Quem te ensinou, marinheiro?
Quem te ensinou a nadar?
Foi, foi, marinheiro,
foi o peixinho do mar?
Foi, foi, marinheiro,
foi o peixinho do mar…
PEIXE VIVO (3ª canção)
Como pode o peixe vivo
viver fora d’água fria?
Como pode o peixe vivo
viver fora d’água fria?
Como poderei viver?
Como poderei viver?
Sem a tua, sem a tua,
sem a tua companhia?
Sem a tua, sem a tua,
sem a tua companhia?
Os pastores dessa aldeia
já me fazem companhia.
Os pastores dessa aldeia
já me fazem companhia.
Por me verem assim, chorando…
Por me verem assim, chorando…
Sem a tua, sem a tua,
sem a tua companhia?
Sem a tua, sem a tua,
sem a tua companhia?
- O Tema Mar no Cancioneiro Popular:
No gênero popular, Dorival Caymmi foi nosso grande “poeta do mar”, porque ninguém cantou o mar de forma mais intensa e verdadeira, tendo experimentado e apre-ciado de perto os encantos praianos e a vida dos pescadores de sua terra natal. Na ado-lescência, Caymmi costumava passar férias inteiras em Itapoã — na ocasião, um luga-rejo, apenas uma colônia de pescadores, em área distante da cidade de Salvador. Chegou a entrar mar adentro com os pescadores, sentindo o frescor do vento e o calor do sol… Daí vem suas canções praianas, com melodias que traduzem ventos, sol, ondas e espu-mas.
Caymmi estava no Rio de Janeiro, no início da década de 1940, quando compôs “Suite dos Pescadores”. Segundo o próprio compositor, tinha mapeado, em suas lem-branças, a rotina simples e cheia de ternura dos pescadores da Bahia. Movido por tais recordações, transformou cada trecho dessa rotina em trechos de uma suíte.
Levando em conta que a vida é, na verdade, uma suíte de momentos vividos em etapas, Caymmi transformou a suíte da vida em suíte musical. Podemos, claramente, acompanhar esses diferentes momentos que representam a vida da comunidade de pescadores transfigurados em sua esplêndida suíte:
SUÍTE DOS PESCADORES
As mulheres (mães, esposas e filhas) acenam no embarque e aguardam, espe-rançosas, o retorno dos pescadores. Choram as perdas que, eventualmente, ocorrem, mas sabem que é preciso seguir em frente e recomeçar…
Minha jangada vai sair pro mar,
vou trabalha, meu bem querer.
Se Deus quiser, quando eu vou voltando mar,
um peixe bom eu vou trazer.
Meus companheiros também vão voltar,
e a Deus do céu vamos agradecer (…)
Em seguida, temos o canto apreensivo das mulheres que clamam o nome de seus homens, temerosas pelo mau tempo:
Pedro! (Eco)
Chico! (Eco)
Lino! (Eco)
Zeca! (Eco)
Cadê vocês, oh, Mãe de Deus?!
É tão triste ver partir alguém
Que a gente quer com tanto amor
E suportar a agonia
De esperar voltar (…)
Ouve-se uma “incelença”, ou seja, um canto de amor pelos que partiram. A palavra “incelença” é uma corruptela de “excelência”, é um tratamento respeitoso pelo morto, uma maneira de rogar aos céus que receba alguém de conduta excelente, daí o nome “excelência”, traduzido, na linguagem rústica do Nordeste, de “incelença”.
A melodia usada por Caymmi nesse trecho é de natureza folclórica, registrada por Gonçalves Fernandes, na obra “O Folclore Mágico do Nordeste”. Caymmi a utiliza tal e qual, fazendo, portanto, uma citação:
Uma incelença
entrou no paraíso.
Adeus, irmão, adeus…
Até o dia do juízo. (…)
Por fim, o retorno ao canto inicial, que acende a esperança da próxima pescaria:
Minha jangada vai sair pro mar,
vou trabalhar, meu bem querer.
Se Deus quiser, quando eu voltar do mar,
um peixe bom, eu vou trazer.
Meus companheiros também vão voltar,
e a Deus do céu vamos agradecer (…)
- O Tema Mar no Repertório Erudito:
“La mer, trois esquisses syphoniques pour orchestre” (“O mar, três esboços sinfônicos para orquestra”), é considerada a obra-prima de Claude Debussy. Composta entre os anos de 1903 e 1905, “La Mer” é uma peça revolucionária, que não segue nenhuma estrutura convencional. Debussy recupera escalas antigas e cria uma ambientação harmônica totalmente inovadora.
Essa harmonia que não se prende às regras tradicionais nos dá a sensação de fluidez. Em “La mer”, não há uma melodia definida como a música dos períodos anteriores; tal como a água que toma um curso imprevisível, a massa sonora orquestral vai seguindo de maneira incomum, surpreendendo sempre, apenas sugerindo sensações.
Não apenas em “La mer” percebemos a fluidez e uma espécie de deslizamento sonoro — essa parece ser uma característica recorrente, na obra de Debussy. Tal característica é, talvez, justificada pela corrente impressionista, inaugurada na música por Debussy, mas nascida na pintura, com Claude Monet. Os “Claudes” (Monet e Debussy) são os precursores da corrente impressionista, a qual não pretende registrar a realidade, e sim as impressões que tal realidade provoca no artista.
O quadro de Claude Monet, intitulado de “Impression, soleil levant” (“Impressões, nascer do sol”), foi o responsável por nomear o estilo inovador na época, denominado de “Impressionismo”.
É curioso o fato do quadro de Monet inaugurar o estilo com uma paisagem aquática, o mar é destacado, na tela de Monet. Ressalto, aqui, que Debussy parece ter a alma banhada por um constante fluxo de água… Há um córrego cristalino ecoando em sua música.
A ORQUESTRAÇÃO DE “LA MER”:
Na orquestração de “La Mer”, Debussy favorece o naipe dos sopros, em relação às cordas, e utiliza uma bela lista de instrumentos de sopro. São eles: duas flautas, um flautim, dois oboés, um corne inglês, dois clarinetes, quatro trompas, três trombetas, três fagotes, duas cornetas de pistão, três trombones e uma tuba. A orquestra se completa com o naipe de cordas (violinos, violas, violoncelos, contra-baixos, duas harpas) e alguns instrumentos percussivos (tímpanos, tambores baixo, tamtam, triângulo e glockenspiel).
A obra “La Mer” divide-se em três movimentos ou episódios:
- De l’aube à mídi sur la mer. (Da alvorada ao meio-dia no mar).
- Jeux de Vagues. (Jogos sobre as ondas).
- Dialogue du vent et de la mer (Diálogo do vento com o mar).
Muito embora Debussy não tenha intenção de exatamente descrever o mar, a escolha instrumental para a formação de sua orquestra implica uma impressionante mas-sa sonora que nos passa um efeito bastante sugestivo, são ondas sonoras alusivas às on-das do mar…
- Considerações Finais
Vimos, portanto, o TEMA MAR recorrente em diferentes linguagens artísticas e, em se tratando da área musical, o tema perpassa os gêneros folclórico, popular e erudito. Por vezes, as linhas melódicas revelam nuances com intenções claramente alusivas, tra-zendo aproximações sonoras surpreendentes; outras vezes, o jogo e as relações de seme-lhança acontecem no ponto de vista verbal, descrevendo cenários e elementos próprios do mar.
Não importa a dinâmica estabelecida para o jogo artístico, a exuberância do mar é destacada em verso, em prosa, em narrativas pictóricas, além de outras vertentes que, neste breve artigo, não há espaço para mencionar.
Referência Bibliográfica:
- ANDRADE, Mário de. Aspecto da Música Brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica Ed, 1991.
- ……………………………… Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: Martins Ed., 1962.
- ……………………………… Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: MEC; São Paulo: Ed. da USP, 1989.
- DRUMMOND, Elvira. A Tessitura Estética dos Brinquedos Cantados. Fortaleza: L. Miranda Editora, 2009.
- FERNANDES, Gonçalves. O Folclore Mágico do Nordeste. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.
- KIEFER, Bruno. Elementos da Linguagem Musical. Porto Alegre: Ed. Movi-mento, 1973.
- SARAIVA, José Américo Bezerra. Como analisar a canção popular. In: COS-TA, Nelson Barros (Org.). Práticas Discurssivas: exercícios analíticos. Campi-nas: Pontes, 2005.
- TINHORÃO, José Ramos. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998.
Por ELVIRA DRUMMOND