Poesia a um leitor
Escreve-me por entre versos lidos
Usa-me como quem me vê
Diz ao mundo o que há de saber
Devolva-me a minha história
Sou tua principal carta
Mais que o teu coração
Levo a tua voz
A qualquer parte do mundo
Lê por entre versos escritos
Meu corpo como se fora despido
Cobre-me com teu coração
Ressuscita-me do esquecido
Márcia Neves
Prezado leitor,
Tenho todas as cartas do mundo para responder e um tempo impreciso para isso. A elas, gostaria muito de dizer que as entendo e concordo. Mas, como posso concordar com aquilo que mexe com opiniões, críticas e pontos de vista? O que mais posso fazer é correspondê-las agradecendo-as por me provocarem ser instrumento e correspondência, além de me permitirem ser um pouco delas e ainda, ser sem respostas. Mas, ao escrever, descubro uma carta e envio a você.
A 27ª edição da Revista Internacional The Bard é um convite ao resgate da memória e à percepção dos alicerces que recebemos de herança que, como bons herdeiros, temos a obrigação de não os deixar cair na zona do esquecimento. Cartas, em todas as culturas e em todos os tempos, foi o elo mais fiel da comunicação humana e da transmissão de conhecimento. Em todos os gêneros e linguagens, a carta esteve presente, materializada ou não, e continua.
Fico feliz em poder voltar aqui e colaborar para a Revista Internacional The Bard. Desta vez, você é meu principal canal e a carta, o nosso referente. Que a poesia permaneça sendo nossa principal correspondência.
Leia-me!
Imagem de Rematroniks por Freepik
Carta ao tempo – virtudes poéticas
Precioso tempo,
Não sei ao certo como traduzir a imensidão de sentimentos que provocas em mim. As memórias do passado são joias que guardo, lembranças vivas de uma sociedade presente. Recordo-me com clareza das filas nos correios, tão imponentes e altivas como dragões gigantes que despertavam nosso respeito. Naquele tempo, as pessoas pareciam radiantes de felicidade, sim, pareciam. E as reclamações eram raras, não existia sequer um serviço de atendimento ao consumidor (SAC), parece. Nesse passado nostálgico e não tão distante, os serviços bancários ainda não faziam parte do nosso cotidiano, assim com tanta autonomia como temos com os telefones celulares, pois nem de longe possuíam inúmeras funcionalidades, aliás nem existiam. Era lindo ver aqueles orelhões coloridos figurando nas praças e esquinas!
É isso mesmo, estimado tempo, a tua evolução ao longo dos anos trouxe contigo uma verdadeira revolução tecnológica que transformou completamente nossas vidas de maneiras surpreendentes. Os avanços tecnológicos nos permitem realizar feitos impensáveis um tempo atrás, fazendo com que me pergunte se, atualmente, ainda posso sentir emoções tão intensas como as que experimentei naquela época, como escrever uma carta em papel especial, perfumada e com beijos de batom, que me fazia acordar cedo para levá-la ao correio, endereçá-la e aguardar uma fila imensa para postá-la, e ainda, esperar alguns dias para ter de volta a sua resposta, caso a mesma não fosse desviada.
Antes que não concordes comigo, reconheço que, de certo modo, essas transformações nos proporcionam novos horizontes, possibilidades, aprendizados, novas formas de conexão. Ainda assim, mesmo com tantos ganhos, sinto saudade e até nostalgia das emoções que todo processo nos causava, pois hoje, vejo de forma inusitada, que temos nossas emoções assaltadas.
Querido tempo, eu sei; sei que queria que tu fosses meu melhor amigo, mas tu também mudaste. Também sinto falta de ti. Comumente ouço as pessoas te atribuírem responsabilidades: “isso o tempo resolve”. Mas cabe a cada um de nós buscar a essência humana e o que nos faz sentir verdadeiramente vivos e inseridos em uma sociedade. E nesse sentido, permanece a incerteza se as emoções que experimento hoje são tão significativas quanto as que sentia na época das cartas. É uma reflexão que surge quando percebo a rapidez com que tu passas, e com que tudo se transforma. Somos bombardeados por novidades tecnológicas a cada dia. É uma mescla de encantos e frustrações que me levam a saudades sem fim. Um contraste que me faz valorizar ainda mais o que vivi e o que a história me ensina.
Peço desculpas se estou sendo sincera demais, meu tempo, mas antigamente, as cartas eram correntes sanguíneas, mantinham famílias, amores e sociedade conectados. Tu tens sido instantâneo demais, meu amigo. Tua imprecisão tem levado muita história à zona do esquecimento, pelo menos não tenho conseguido fazer-te backup. Tanta praticidade não é tua culpa, claro! Estão te impedindo de personalizar nossa vida, também percebo isso, e sei que tu sofres por não mais poder desenvolver tua arte de construir essência humana. Agora mesmo sinto-me como se estivesse escrevendo à mão, desenhando letras, pintando sorrisos enquanto me permito fluir nos pensamentos e lembranças. Talvez seja hora de relembrarmos a importância e o valor das cartas, não como substituição completa da tecnologia, mas como gatilho para reconstruir-te em nós e não te perdermos de vista; como forma de equilibrar nossa vida digital reservando-te em nossas intimidades; como restauro de conexões perdidas.
É evidente que o mundo mudou e os avanços tecnológicos trouxeram modernidades e condição de vida, ao mesmo tempo em que também alavanca desigualdades sociais e provoca violências. Aquelas pessoas que, naquela época, nas filas dos correios, pareciam radiantes de felicidade podiam contar contigo para muita coisa, inclusive para escrever como fizeram e fazem os Paulos, Pedros, Matheus, Marcos, Carolinas de Jesus, Coralinas, Clarices da vida, etc.
Lamento o desaparecimento das cartas, e nesta edição da Revista, quero resgatar o seu valor que vai além de qualquer comunicação. As cartas nesse ensejo, são tesouros, herança cultural que merece ser ensinada, preservada, mesmo em tempos avançados.
Abraços!
Espero-te amanhã para mais tempo como este.
Por MÁRCIA NEVES