De vez em quando me pego lembrando de algumas situações engraçadas e curiosas vividas com amigos que enxergam. Uma delas foi partilhada com uma amiga da universidade. Sônia é uma dessas pessoas que adora discutir política, sociologia e filosofia, com ela a conversa é sempre em alto nível.
Era crepúsculo, estávamos caminhando pela avenida Senador Lemos, em direção a praça D. Pedro I, em Belém. Íamos atravessar uma esquina, Sônia estava guiando-me, de repente percebi que ela ia atravessar quando vinha um carro em nossa direção. Apressadamente falei:
– Mana, não estás vendo o carro vindo? Se tu queres morrer, vai sozinha! Ainda tenho muita vida para viver!
Ela, surpresa, perguntou:
– Nossa! como sabias que um carro estava vindo?
– Bem, eu me oriento pelo trânsito paralelo.
– Como funciona isso?
– Identifico o fluxo dos carros a partir da intensidade do som que fazem, assim tenho como saber a direção e a aproximação deles, isso me dá mais segurança
– Nossa, falando desse jeito parece simples, é que a ciência moderna gosta mesmo de complicar e está sempre privilegiando a visão como sentido principal.
– Eu já não posso considerar a visão o sentido principal porque enquanto um corpo movente, me desloco pelas ruas, penso, vivo e sonho, utilizo a sensibilidade perceptiva aguçada por tudo que no mundo acontece. Dessa maneira, sinto esse mundo através dos sons que meus ouvidos podem captar, do cheiro que as coisas emanam, das nuances do ar quando tocam minha pele. Além da percepção, ainda conto com Scarlett, minha bengala, que integra o meu sistema motor.
Sônia ficou encantada com minha explicação. Ela que nunca tinha parado para pensar sobre essa forma diferente de ser e estar no mundo, de repente se viu guiada pela amiga cega. Outros assuntos vieram à tona e ocuparam nossas conversas, e sem mais surpresas seguimos o trajeto até chegarmos enfim ao nosso destino desse dia.
“CRÔNICAS DA INCLUSÃO – Narrativas de Pessoas com Deficiência Visual”
Por MÔNICA CARVALHO
