NOSSA LITERATURA – Crônica: Olhos e Olhares por Joana Martins

NOSSA LITERATURA – Crônica: Olhos e Olhares por Joana Martins

 Ele tinha os olhos gateados. Ela tinha olhos castanho-escuros.

 No primeiro encontro apenas se cumprimentaram. Ele sempre foi falante. Ela preferia escutar. A primeira conversa foi sobre histórias. Ele disse que gostava dos contos da mitologia grega. Ela revelou que amava os contos de fadas.

 Os encontros aconteciam em uma sala de aula, quando não havia estudantes, sempre no intervalo para o almoço. Na maioria das vezes tinha uma terceira pessoa, mas o diálogo se mantinha entre os dois.

 As histórias, sempre as histórias, era o assunto inicial. A amizade foi se fortalecendo. Ele propôs outros encontros, ela aceitou. Ele pensava que podia aprender alguma coisa com ela. Na cabeça dela passavam mil coisas, sabia que podia aprender muito com ele.

 E aconteceu o primeiro encontro fora da sala de aula. Espaço aberto, muita gente. Era tempo de São João, festa junina, danças e comidas típicas: mingau de milho, bolo de macaxeira, canjiquinha… Aguardavam uma apresentação de carimbó. Ele estava animado. Ela não cabia em si de felicidade. O grupo de carimbó entrou. Ela começou a falar:

 – Que lindo! Ele ri e pergunta:

 – Como estão os dançarinos?

 – Muito bem arrumados, com roupa de carimbó.

 – Como eles estão no palco?

 – Estão em duplas, formando uma roda. Agora começou a tocar a música de carimbó.

 – Me fala deste espaço, é grande? A que distância estamos do palco? Como é a roupa dos dançarinos?

 Ela estava emocionada com a dança, ia respondendo sem prestar muita atenção. Ele ria. Ela ria. Ficaram balançando no lugar.

 Os encontros ficaram mais frequentes. Passaram a trocar histórias, enquanto o tempo os aproximava ainda mais.

 Muitas vezes aproveitavam o intervalo entre as aulas para devorar livros de contos. Ele lia com desenvoltura, seus dedos se moviam sobre os pontos em relevo com grande agilidade. Ela corria os olhos pelas páginas com igual velocidade. Eles se divertiam com as histórias e nem viam o tempo passar.

 Certa vez combinaram de almoçar em um lugar recém-inaugurado, próximo à escola, a fome não era grande, mas a expectativa pelo sabor fez com que colocassem mais comida nos pratos do que o habitual. Ela sempre dizia o que tinha para que ele escolhesse o que ia comer. Ao final ela pagou com dinheiro em espécie, ele quis pagar com o cartão.

 Olhos gateados retirou o cartão do bolso e o entregou à pessoa do caixa, que pegou imediatamente e o colocou na maquininha. Digitou alguns números e ofereceu a máquina para que fosse digitada a senha. Até aí tudo bem, não fosse ela ter direcionado a máquina para Olhos castanho-escuros, sendo que somente Olhos gateados conhecia a senha de seu próprio cartão. Eles não riram. Fizeram o pagamento e saíram um tanto decepcionados com o desfecho de um almoço cheio de expectativas.

 Uma vez o encontro foi em um bosque com a participação de amigos em comum. Vegetação rasteira e grandes árvores em caminhos tortuosos formavam um verdadeiro labirinto. Conversa vai e conversa vem se separaram do grupo. Ela percebeu que estavam perdidos, não viu para onde tinham ido os amigos, sentiu um pouco de medo.

 Ele a tranquilizou, disse que conseguia ouvir as vozes dos amigos e que a levaria até eles. Ela achou aquilo o máximo e perguntou como ele conseguia, visto que não ouvia nenhum ruído que pudesse ser dos amigos. Ele respondeu que era só uma questão de treino. Pediu para que ela fechasse os olhos e tentasse identificar os sons, ela fechou, mas continuou sem ouvir as vozes dos amigos. Ele indicou o caminho e em pouco tempo reencontraram o grupo.

 Ela admirava a inteligência dele. Ele se encantava com a criatividade dela. Aos poucos ela aprendeu a reconhecer o toque da bengala dele, mesmo antes de ouvir sua voz. Ele percebia qualquer movimentação e descobria rapidamente onde ela estava. E os encontros se repetiram, na escola, no bosque, na praça… Foram anos de troca e aprendizagem, surpresas e brincadeiras, muita leitura, muitas histórias.

 E veio o tempo em que os encontros pararam, os telefonemas antes frequentes agora quase não existiam, as mensagens cada vez mais distantes, tudo foi se afastando, diminuindo… – mas o acelerar do coração e a alegria da amizade ainda voltam, ao simples ouvir os nomes ou as vozes um do outro, lembranças daqueles olhos… – olhos que veem pelas retinas, olhos que veem além das retinas, olhos que aprendem, olhos que ensinam, olhos castanho-escuros, olhos gateados.

 

“CRÔNICAS DA INCLUSÃO – Narrativas de Pessoas com Deficiência Visual”

Por JOANA MARTINS

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