NOSSA LITERATURA Na falta do rosto, fica o desejo de representá-lo

NOSSA LITERATURA Na falta do rosto, fica o desejo de representá-lo

Na falta do rosto, fica o desejo de representá-lo

 

Na falta do rosto, fica o desejo de representá-lo

Cujos movimentos da boca

Que fala sem sentir

 

Ecoam palavras jogadas ao vento

Que chegam nem sei como

 

Ao coração do homem

Que goza a paz que nunca tivera

E traça seu rosto

No corpo que conheceu

Através de sua história

 

Márcia Neves

Imagem gerada por IA

 

Querido leitor,

Gosto de dizer que a escrita é para mim o movimento mais eminente da descoberta e do prazer, além de ser o meu modo de não exclusão do mundo.   A 26ª edição da Revista Internacional The Bard é um convite a uma imersão cultural, concomitante ao reconhecimento do que somos diante da nossa própria narrativa, a história do mundo. Nesta edição, minhas palavras se comprimem em dimensões sem fuga de nossa própria história. Retratar a Cultura Africana, mesmo que panoramicamente nesta coluna, é abrir diálogo, sem abrir mão de nenhum segundo do nosso tempo para estarmos juntos por meio da linguagem também literária, em reconhecimento do que, de fato, mantém viva uma nação: sua história, sua cultura.

E mais uma vez, reitero o poder universal da literatura, com seus arranjos humildes e inclusivos, de poder atender em todas as linguagens, inquietações de toda a gente, incluindo as nossas, oferecendo-nos condições precisas para isso. A poesia, ademais, é uma dessas condições, já que é um sinal visível e atemporal de nossas percepções, nas quais se incluem nossos sentimentos.

Com o coração agradecido pela oportunidade de, mais uma vez, colaborar para a Revista Internacional The Bard, convido você a embarcar comigo nessa viagem reflexiva, cuja arte literária se encarrega de lhe conceder total liberdade de contemplação e desfecho. 

 Vamos nessa!

 

Adeus à hora da largada

Minha Mãe
(todas as mães negras cujos filhos partiram)

tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

 

Agostinho Neto – in Sagrada esperança – Poeta, escritor e líder político, foi um dos fundadores da poesia moderna angolana na segunda metade do século XX, ao lado de autores como Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos, e também foi um dos responsáveis pela criação do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) e o primeiro presidente do país após a sua independência de Portugal.

Imagem do Google                                                                                    

 

Tão verdade, quanto real é a literatura de um povo 

Imagem gerada por IA

 

Eminentemente marcada pela trajetória de um povo que buscava sobreviver ao caos instalado pelo colonialismo e aos mais variados problemas de ordem social, e consequentemente, certa independência, A Literatura Africana, principalmente nos países de língua portuguesa – a começar por Angola e Moçambique, onde primeiramente essa literatura se instaurou – surge como voz ou vozes, meio de construção e também, de resgate de uma identidade e compreensão de sua própria narrativa.

A literatura, como de praxe, sem fronteiras, nem etnias (como entendo que deveria ser), protagoniza o processo de fala, organização e reorganização da humanidade, sem restrições, em todos os tempos e em qualquer época, embora sempre tenha sido motivo de recusa por parte de todos que se contrapunham a ela (eurocêntricos, por exemplo), convertendo-a tão bem em um teste de resistência – já que era preciso resistir a ela mesma, uma vez que relutava contra a literatura da bajulação e dos aplausos ao medíocre – senão em instrumento no exercício da cidadania (busca de reconhecimento e respeito a todos as riquezas naturais, socioculturais, históricas, etc.), e até de reparação e retratação históricas.   

O termo “pós-colonial” é uma expressão que surgiu somente após a Segunda Guerra mundial e passou a ser referência de identificação dos países que, a grosso modo, haviam se independizado, e de época entre os historiadores e literatos.  Com isso, a literatura segue celebrando a vida e servindo de mecanismo e projeção entre o antes, o durante e o depois da colonização, como uma verdadeira ponte que permite ao povo desbravar um relevo completo de superfícies que entregam e reparam seu modo de estar no mundo.   

Devido à falta de liberdade e independência pela qual passou o continente africano, percebe-se a proeminência da cultura popular, uma vez que surge como recurso-base e necessário e também, por ser, naturalmente, código de convivência (o que, de fato, é uma riqueza nas relações humanas); mas, concomitantemente, nos leva a refletir sobre o quanto uma sociedade se restringe ao ter impedido o seu direito de ser, de conquistar/construir sua identidade e de enxergar e explorar, naturalmente, suas riquezas.

Em contrapartida e infelizmente, a literatura, durante séculos, também foi palco de representação de classes, tendo em vista que, quem tinha acesso a ela eram as pessoas “elitizadas” ou “privilegiadas”, a começar pelo acesso à leitura que nem todos possuíam, muito menos as mulheres (quando ainda eram objetivadas à submissão), e o homem protagonizava esse “posto de poder”, como bem ilustram os romances românticos, seguidos do Romantismo como escola literária que, a grosso modo, desperta na mulher o desejo de conquistar autonomia e a percepção de que é necessária a sua participação nesse ínterim.

O racismo (também resultante da visão etnocêntrica) – um dos problemas incutidos nos de maior dimensão contra os africanos – sempre foi válvula de menosprezo, diminuição, desvalorização de tudo e de qualquer coisa que fizesse parte de sua cultura e sua história, inclusive por serem negros (vide poema seguinte), etc. e por não “pertencerem” aos europeus. Logo, todos os pensamentos deveriam estar voltados a eles. 

 

VELHO NEGRO – Agostinho Neto

Vendido

e transportado nas galeras

vergastado pelos homens

linchado nas grandes cidades

esbulhado até ao último tostão

humilhado até ao pó

sempre sempre vencido

É forçado a obedecer

a Deus e aos homens

perdeu -se

Perdeu a pátria

e a noção de ser

 

Reduzido a farrapo

macaquearam seus gestos e a sua alma

diferente

 

Velho farrapo

negro

perdido no tempo

e dividido no espaço!

 

Ao passar de tanga

com o espírito bem escondido

no silêncio das frases côncavas

murmuram eles:

Pobre negro!

E os poetas dizem que são seus irmãos.

 

Tendo em vista a força da cultura popular e a necessidade do processo de reconquista da humanidade dos africanos, vários grupos literários, formados por gerações mais novas, foram surgindo, criando novos e atuais modelos e conceitos literários, capazes de, não só manifestar sua história, mas de romper com estruturas fixas, tradicionais e “restritivas”, e de repaginar e servir às necessidades reais do povo. Porém, segundo (COUTO, 2005, P.61) a reconquista da liberdade e os novos modelos literários não podem isentar totalmente a Europa, em prol de uma “limpeza cultural”, sabendo que qualquer repaginação que se faça, por mais distante que pareça, dialoga em diversidade com ela.

Embora não haja fuga total dos “opressores”, é injusto manter uma sociedade invizibilizada pela “diversidade vencida pela ganância” do que ou de quem violou a cidadania e a humanidade de um povo, por mais que se apresente impossível, partindo do pressuposto de que nações foram tomadas por ideologias manipuladoras e interesseiras, como o que aconteceu também no Brasil fazendo referência ao processo de “embelezamento” dos “índios”, a grosso modo.

Segundo Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, escritor moçambicano, para a Revista Pazes em 2018, em seu artigo “São demasiado pobres os nossos ricos”, “A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Aquilo que têm, não detêm. ” Para a Folha de São Paulo em 11 de junho de 2022, ao falar da escravidão africana, Mia Couto diz:

 Africanos não foram só vítimas da colonização. É preciso olhar para a África com sua complexidade, inclusive na margem de culpa que pessoas daquele continente tiveram na história da própria colonização. A simplificação do continente pode ter ajudado quando era preciso afirmar que África tinha cultura e história. Nós próprios africanos falávamos de uma África. Mas depois construímos identidades e vozes diferenciadas, somos plurais desde sempre.

Até porque, pode-se reconhecer que a colonização, além do material, é um processo simbólico, sob o prisma de que ações giram em torno não só da economia, mas da luta por sobrevivência, tendo em vista suas memórias e modos de representação de todos (cada um defendendo seus interesses, enquanto também, são submetidos a intenções alheias), dito de outra forma, nenhuma colonização esteve isenta do trabalho, de ideologias e culturas.

 

Sou um mistério (Agostinho Neto)

Vivo as mil mortes

que todos os dias

 

morro

fatalmente.

 

Por todo o mundo

o meu corpo retalhado

foi espalhado aos pedaços

em explosões de ódio

e ambição

e cobiça de glória.

Perto e longe

continuam massacrando-me a carne

sempre viva e crente

no raiar dum dia

que há séculos espero.

 

Um dia

que não seja angústia

nem morte

nem já esperança.

 

Dia

dum eu-realidade.

 

Eis, então, a literatura em seus tradicionais e novos moldes, com todas suas nuances, sendo voz em um processo de (re)conquista, ou melhor, demarcação de vida em todos os territórios culturais, linguísticos, biológicos e epistêmicos, por parte de escritores que buscaram traçar versões reais de sua gente, recriando visões pessimistas que foram projetadas sobre a África, mas longe de romantizar o continente, e mais próximo da tentativa de combater racismo e preceitos eurocêntricos, ou ao menos, amenizar a dor dos oprimidos.  Evidencia-se, portanto, o papel social da literatura:  fortalecer e disseminar culturas, em qualquer um de seus idiomas, restaurando sua humanidade e universalizando narrativas que se unem por questões históricas e se distanciam por questões políticas e também, religiosas.    

Imagem IA

 

De norte a sul – Márcia Neves

Berço da humanidade

Tão vasta e tão bela

Terra de fauna e flora

Singelas

 

Resistência por lema

Tradição de luta

Pura e dolorosa

Contra o colonialismo

E a ambição do invasor

 

De uma história de exploração

Com crenças fecundas

Aos laços antepassados

De raízes que brilham

E versos que se fundam

 

Despertar de consciências

Com nuances eurocêntricas

Em direção a verdades

Profundas

 

Sem perder de vista

Origens e essências

A liberdade perdida

Nas lutas de classes

Se converte em poesia

Literatura respira

Em vida a arte

De norte a sul de toda parte  

 

“Que nunca, nunca, nunca mais esta bela terra experimente novamente a opressão de um pelo outro e sofra a indignidade de ser a escória do mundo. Que a liberdade reine!” –

Nelson Mandela

 

Fontes consultadas

https://diplomatique.org.br/o-papel-social-da-literatura-africana/#:~:text=A%20literatura%20africana%20fez%20e,%2C%20sociais%2C%20lingu%C3%ADsticas%20e%20epistemol%C3%B3gicas.

 

BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.

 

BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.

DUARTE, Zuleide. A tradição oral na África. Estudos de Sociologia, Recife, v. 15, n. 2, p. 181-189, 2009.

Para conhecer a literatura africana

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 33ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Final-Artigo (unifap.br)

ea3b542a9f72d89e25d6b18c746adcd7.pdf (cecierj.edu.br)

Por MÁRCIA NEVES

Pular para o conteúdo