Acordei cedo e, como de costume, tomava meu breve café da manhã, ainda sonolenta, naquele processo de tentar reunir alma e corpo posto que cada qual seguia seu próprio ritmo sem se importar com a necessidade de andarem juntos.
Vesti-me também como fazia sempre. Ação acompanhada de maquiagem, perfumes e tudo o mais que pudesse trazer alguma espécie de disfarce para a noite mal dormida. Afinal, havia uma imagem por que cuidar. Pego a estrada e enfrento corajosamente o trânsito que se descortina complexo e gigantesco, como o sol que se levanta, a despeito de meu humor.
Chego à escola e logo esqueço o sono que fica abandonado, talvez ainda no banco do carro ou escapa, sub-repticiamente, com o vento, quando abro a porta. Converso com os colegas, tomo mais um gole de café… Damos risadas de qualquer bobagem, especialmente ao bisbilhotar as peripécias que só a docência nos permite. Observo ao meu redor que nem todos conseguem superar o desafio de estar trabalhando já às sete da manhã.
O sinal nos alerta de que devemos ir. Ao chegar à sala, entro recitando um sonoro bom dia. E para minha surpresa, a resposta não vem. Contemplo a turma. Estão distantes. Olhares vazios, olheiras profundas, hormônios à flor da pele. Insisto em meu bom dia que soa estranho como se eu incorporasse naquele instante o famigerado cobrador de impostos. Como resposta, recebo alguns resmungos ininteligíveis.
Penso na aula que planejei e me sinto impotente. Não será capaz de mobilizar o interesse de meus incautos adolescentes. Busco em minha mente os anos de estudo que me fizeram ser a professora que sou. A mente parece vazia por um instante. Busco alguma inspiração, nada me vem de imediato até que ouço alguém assoviando uma melodia ao longe e resolvo mudar…
Chamo o nome de uma de minhas estranhas criaturas e pergunto qual a sua música preferida. Capto ligeiramente um olhar de interesse de minha plateia. O dito cujo interrogado então me surpreende ao cantarolar com muito ritmo um samba da velha guarda. Se me impressionei com a escolha, imaginem a reação do restante da turma… Ou será agora turba? Surpreendentemente desperta, curiosa e falante, perguntam ruidosamente que música era aquela.
Sem qualquer traço de constrangimento, meu interrogado (nesse momento, criatura preferida) continua a cantoria e ao final fala da música de sua predileção… O som do lindo samba de Zé Kéti, repercute então pela sala, acompanhado de um leve e ritmado bater de dedos na carteira: “Eu sou o samba/ A voz do samba sou eu mesmo, sim senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor/ Eu sou o rei dos terreiros”. E com voz pomposa de quem sabe do que fala, anuncia: Zé Kéti, também conhecido como a voz do morro, cantava a vida no morro em contraste com a cidade e todas as suas mazelas… Uma beleza de fotografia da realidade!
Perguntei então quem mais conhecia o samba e outro colega levantou a mão. Propus que pegassem os celulares e, em grupo, pesquisassem outros sambas da mesma época… E escolhessem letras que achassem interessantes. O burburinho voltou. Dali a um tempo, pedi que falassem de suas escolhas.
Entre risadas e brincadeiras, sobrevivemos todos… ao sono, ao tédio e ao silêncio com que iniciamos o dia, acreditando que a arte, de fato, cura!
Por SANDRA MARA BESSA