É densa a escuridão, quase palpável e é difícil respirar, como se o ar também estivesse apagado, como se fosse possível tocá-lo, consistente. Não sinto meu corpo, mas, de alguma forma sei que estou deitada, em repouso, não estou cansada e nem descansada, nem mesmo sei se estou, me sinto livre, solta, imaterializada e aconteço dentro da minha cabeça, pensamentos, lembranças, memórias (…) Era quinta-feira e chovia, me lembro de ouvir o apito do trem e de me sentir atropelada por ele, agora, pensando bem, já não sei de onde vinha o som do apito, talvez fosse a imposição do toque de recolher ou um chamado violento de auxílio contra a vida, já a sensação, eu tenho certeza, aquele trem, gélido, esmagando meu corpo, me sufocando, os olhos abertos, arregalados, não pelo susto, mas pela rapidez dos acontecimentos, não consegui fechá-los, não quis, eu não podia; a rua parecia calma, mas eu sabia que não estava, nunca foi, desde… sempre; o som da chuva me perturbava, tudo me perturbava, era difícil me concentrar no nada, eu desejava o silêncio, eterno; sentia o gosto da ferragem molhada e o cheiro do mofo, acho que era meu próprio cheiro, embolorado. Queria ouvir música, minha última música, despedida e dançar, rodopiando, passos improvisados, silenciosos; queria flutuar, me elevar, ser conduzida pelo invisível, cada dúvida, cada questão, ser levada para o depois que ninguém sabe se existe; queria ouvir o piano, agora proibido, mausoléu das canções; me lembro que eu não queria ter que querer e só ir, continuidade estática, como um véu, transparente, exposto no varal antigo, arame farpado, como um véu que flutua, preso, inspirado pelo vento, eu só queria ir.
Paro e sinto — ainda estou dentro do quarto, de olhos fechados, pesados, lembrança — aquele bafo quente, o grito que me despia a alma, imposição, me senti violada, maculada, a camada inferior de uma terra podre, que replanta a morte, muda calada, broto do fim; senti a sentença imposta pela raça supervalorizada, que iniciou meu retorno ao pó, do pó de onde vim e ainda era, fragmento; senti a alma esbofeteada pela violência das palavras fétidas que me infectavam a essência e eu tentei, eu corri, lutei, uma, duas, já nem sei quantas vezes; sobrevivi de perdas, ruínas, mas a sobrevivência já não me vivificava, eu perdi, me perdi, antes mesmo de iniciar, derrota. Vivi a mesma vida, desde que o caos se instaurou, faz muito tempo, não me lembro quanto, só sei do apito e do trem, aquela luz forte em minha direção e o som, que me ensurdecia; dentro do quarto parecia ser o último trilho, a última viagem, o último apito, o vazio aconteceu rápido demais; eu ouvia, agora, o piano, apenas as teclas pretas, acidentes e dancei, eu fui, sem me despedir e essa é minha última memória.
Sinto a expansão natural do meu tórax e respiro calma, sensação; não tenho corpo, não sei para onde levaram minha matéria, ainda assim, minha respiração é ofegante, assustada; medo, apenas, do desconhecido e de nada mais. Já não tenho a alma rasgada e nem o desgaste em meu ser; ainda não encontrei as respostas, mas descanso, imóvel e suspeito que a vida não acaba no fim do trilho (…)
Por JÉSSICA SABRINA