Introdução
A aventura de poder visitar museus pelo mundo afora nos coloca em lugares privilegiados de memórias e nos ajuda a realizar mediações culturais entre diferentes mundos, símbolos e signos de grupos humanos diversos. Esses dispositivos de mediação cultural conferem vida e significados filosóficos, políticos, culturais a diversas civilizações por caminhos variados. Estar entre estes artefatos nos coloca diante do espetáculo da diversidade cultural e humana do planeta. Os museus, em suas diversidades de tamanho, tipo de arquivos, patrimônios materiais e imateriais, nos proporcionam experiências diversas nas fruições, reflexões e partilhas. Desde a arte moderna aos grandes e variados tesouros históricos em espaços abertos, fechados, paradisíacos ou empoeirados, nos transportam para tempos históricos não vividos despertando nossa cognição para aprendizagens ao longo da vida.
Museus são considerados espaços pedagógicos onde é possível realizar encontros emblemáticos com nossa fértil imaginação. Eles são instrumentos de testemunho das dinâmicas culturais de todos os povos. Orientar o olhar para as heranças culturais dos nossos ancestrais, seja na visita física ou por meio de percursos virtuais, nos permite entrar em contato com a turbulenta e efervescente história do mundo.
Eles possuem variados tipos e constituição, mas neles todos são possíveis entrar em contato com a combinação rica de legados e saberes ancestrais ou atuais. Não se trata somente de enxergar as produções culturais velhas e novas, o passado e o presente, e sim estabelecer ligações com a universalidade dos seres humanos na construção de suas histórias, escritas de si e capacidade humana de rememorar as dimensões sociais, sobretudo identitárias. É espaço de ligação para articular dimensões cognitivas e afetivas.
Maurice Halbwach (1994) e Cassin (2004) chamam atenção dizendo que as memórias mobilizam emoções, desvelam interesses políticos e precisam ser submetidas a rigorosos procedimentos críticos. Nesse sentido, podemos compreender o campo dos monumentos memoriais e os museus como espaços de manifestações subjetivas, espaços de expiação pública e registro de memórias traumáticas, tais como a representação do holocausto, museus da escravidão, guerras e das transgressões aos direitos humanos.
Os museus podem refletir aprendizados cognitivos de exploração de experiências vividas e a problematização das aparências simples das coisas neles expostas, permitindo às pessoas formarem escolhas próprias de interpretação, inserindo as memórias em seus contextos. Podem fortalecer as memórias coletivas, ou seja, as memórias individuais se reportam sempre a um quadro social, não podendo resgatar memórias sem estar em diálogo com a maneira como os grupos humanos, as camadas sociais, grupos religiosos ou famílias fazem lembrar o passado. Eles podem proporcionar ricas e complexas relações entre patrimônio, educação e cultura no processo de formação humana.
Em contato com os diversos legados culturais, podemos perceber a existência do outro e tomar consciência de nossa condição planetária. Segundo Harari (2020), a ordem imaginada molda nossos desejos, uma vez que somos moldados desde o nascimento por mitos dominantes, ou seja, nascemos numa ordem pré-imaginada preexistente. Assim, com a evolução da ciência e a possibilidade de interpretar escritas de várias formas, os museus se tornam pedra angular no entendimento da história humana.
A descolonização e os museus reinterpretados
Pode-se considerar que as tarefas aparentemente simples dos museus, que seus objetivos comuns seriam a de recolher, preservar e permitir a interpretação de uma suposta “História Universal”, que foram modificando-se. A crítica à tradição dos museus como instituições que servem uma elite cultural foi estabelecida há muitos séculos, mas não foi pacífica a criação destes lugares de estabilização de cânones e de valores. Contar narrativas sobre os objetos que conservam e sobre o seu contexto, no momento da recolha, deu lugar a uma quebra de estabilidade das classificações e das hierarquizações disciplinadas das raças, das espécies e dos cânones artísticos.
As vozes de Frantz Fanon, Amílcar Cabral e Edward Said, bem como os teóricos contemporâneos, como Dipesh Chakrabarty, Arjun Appadurai, Achille Mbembe, Harry Geruba, Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Enrique Dussel, apresentam críticas ao progresso colonial e desenvolvem programas de resgate, denúncia e resgate das origens coloniais do museu, bem como a percepção pública a respeito. As lutas sociais de reivindicação dos direitos humanos em todo o mundo, bem como a luta por direitos dos imigrantes, são exemplos de resgate da história colonial vivida numa situação que foi subalternizada, e que hoje redirecionam as narrativas sobre os museus. Nesse novo contexto, são questionados os pressupostos epistemológicos da museologia ocidental, deslocando o lugar dos museus para a área do cultural. Sem também deixar de considerar que, neste mercado museológico, vendedores e compradores passam a adquirir obras cuja estética é valorizada no campo das concepções coloniais atuais.
A invenção colonial dos museus está sendo transportada para o campo dos conflitos culturais, possibilitando a elaboração de uma nova leitura do processo histórico da colonização. Um exemplo importante a ser lembrado é o Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago do Chile, o qual é um museu anticolonial. Um projeto de desconstrução do que foi o período da ditadura chilena na década de 70.
A luta pelos Direitos Humanos, os movimentos negros, os movimentos indígenas, os movimentos de ocupação de terra e as novas cartografias das favelas mostram as novas experiências na construção dos Museus. Os autores registram a emergência de uma «episteme desobediente», por um «desligamento epistemológico» da vocação universalista dos museus. Entretanto, ainda resta uma grande indagação: em um mundo de infinitas subjetividades humanas, é possível descolonizar os museus ou reformar as relações entre o presente e o passado?
Impressões pessoais sobre os museus
Reconhecendo a legitimidade dos estudos sobre o lugar dos Museus na construção cultural dos povos e das diversas interpretações epistemológicas sobre o tema, vou me permitir nesta coluna defender que todas as pessoas no processo de aprendizagem do mundo deveriam ter acesso aos intrigantes acervos dos “Museus” mundo afora como forma de poder dialogar com as representações das inúmeras coleções colocadas à disposição do intérprete de cada obra visitada. Quando adentrava cada galeria, cada obra, cada cultura aprendida, não me deixava refletir se estava ou não diante de uma discussão colonial, ou decolonial da obra. Diante de coleções sobre o Egito, Ásia, África, Oriente Médio, Europa, Grécia e Roma Antiga e outras, eu me permitia viajar há tempos distantes, dialogar com o passado recente e me ver como parte deste grande universo cultural.
Como não se encantar diante da Pedra de Roseta no Bristish Museum e poder ver em tempo real um fragmento de um registro que estabelece um Decreto sobre o culto ao faraó Ptolomeu V em 196 AEC no delta do Nilo, no Egito? Mas também como não me encantar diante das esculturas surrealistas de Francisco Brennand no Brasil; no túmulo de Jesus Cristo em Jerusalém; no túmulo de Merlin na Bretanha. Como não parar o tempo diante das esculturas de Moisés e David de Michelangelo? Me encantei diante dos Escritos do Mar Morto em Jerusalém e da cidade de Davi, relembrando as estórias que minha mãe me contava.
Imagem da autora. Oficina Francisco Brennand -Brasil
Imagem da autora. Túmulo de Jesus-Israel
Imagem da autora. Tumulo de Merlin-França
Imagem da autora. Davi de Michelângelo
Imagem da autora. Moisés de Michelângelo
Dancei como uma deusa durante os “desfiles da fallas” em Espanha-Valência; me transportei ao universo dos mistérios contados sobre a Capella Rosslyn na Escócia.
Imagem da autora. Fallas- València -Espanha
Como foram originais as emoções vividas ao estar diante do Código de Hamurabi, o primeiro documento legal escrito da história, os touros alados da cultura mesopotâmica que representavam híbridos entre touros, águias e humanos para proteção contra inimigos; a Monalisa de Da Vinci; a Obra Casamento em Caná de Veronesi (Jesus Cristo e seus discípulos) com seus 10 metros de altura; A Morte da Virgem de Caravaggio; a Vênus de Milo uma das mais importantes esculturas gregas. Me reportava às lições de história da educação básica e me sentia privilegiada em poder, enfim, passear, cantar, sorrir e aprender em contato com as obras que, na juventude, eu via nas ilustrações de livros.
De olhos abertos e curiosos, sentei-me diante do Sarcófago de Alexandre, o Grande, no “Museu de Arqueologia de Istambul” (século IV AC); da estela funerária de Palmira; das tablitas com cartas dos Hititas ao Faraó Ramsés II. Foram muitas emoções vivenciadas em cada Museu dos inúmeros países que tive o privilégio de visitar. Formei meu acervo pessoal de cerca de 9 mil fotos que registram meus encantamentos diante de tanta riqueza que os museus fechados e ao ar livre me proporcionaram.
Imagem de Bloomberg por Reddit
Apesar das discussões dos especialistas que envolvem períodos coloniais e a necessidade atual de iniciar o processo de colonialidade dos objetos de museus, entendemos que este é um processo longo e necessário, entretanto é preciso reconhecer que para além desta discussão é preciso situar a importância dos Museus pelo Mundo para nos aproximar de outras culturas às quais não temos acesso.
Os museus são espaços de atribuição de sentidos. Ter acesso aos patrimônios culturais de outros povos permite compreender a condição humana, compreender a diversidade de possíveis explicações filosóficas, religiosas e simbólicas.
Não podemos deixar de compreender que o acesso ao conhecimento permite traduções e não simplesmente reflexos sobre uma realidade desconhecida. Ao entrar em contato com patrimônios culturais diversos ampliamos nossa capacidade de reconstruir discursos sobre a realidade, que ao longo dos processos civilizatórios foram permeados por tensões e conflitos, perceber conexões ricas e complexas entre civilizações, traços culturais e visões de mundo.
As tecnologias digitais e a revolução de acesso aos Patrimônios Culturais
Do ponto de vista econômico, os estudos que relacionam os museus e suas relações com o turismo, por serem considerados atrativos culturais, têm se ampliado. Neste contexto, as tecnologias digitais têm proporcionado experiências diversas. Os museus têm- se tornado geradores de demandas turísticas e consequentemente instituições educativas culturais importantes na atualidade. Segundo a plataforma Museums.eu (The European Museums Network), em 2021, os dez museus mais visitados da Europa somaram mais de 50 milhões de visitantes. Nesse sentido, podemos sem sombra de dúvidas corroborar o entendimento de que essas instituições ocupam um novo lugar no processo de aprendizagem social. Deixam de ser simplesmente espaços para a exposição de objetos, tendo um lugar privilegiado de aprendizagem humana. Um vasto espectro de campos de interesse se avizinha nesse debate sobre a importância dos museus na ampliação da riqueza da cultura humana e consequentemente na aprendizagem social.
Imagem de Paul_Henri por Pixabay
No meu entendimento, os espaços museológicos são templos da tecitura cultural humana e permitem que as artes e ciências se tornem fomento do conhecimento. O crescimento e a diversificação de formas interpretativas deste legado, seja colonialista ou outra categoria, vem expandindo horizontes interpretativos, sobre sua importância para incluir novas categorias e temas. Não podemos fugir de compreender que a realidade é uma projeção humana que permite metamorfoses permanentes. A evolução científica e tecnológica nos coloca em lugares plurais para interpretação de tempos e culturas. (ROMÁN, GONZÁLEZ & GASCÓN, 2017)
Imagem de Iarahcv por Pixabay
Referências.
ROMÁN, E. P., Gonzàlez, N. T., Gascón, J. F. F. (2017). Innovación, turismo y TIC: el caso de los museus de Barcelona. Pasos. Revista de Turismo Y Patrimonio Cultural, 15(3).
HARAR. Y. N. Sapiens: uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
CASSIN, B. et al., Vérité, réconcilitation, réparation. Paris: Seuil (Le Genre Humain 43), 2004.
HALBWACH, M. Lex cadrex social de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.
PINTO RIBEIRO, A. Podemos descolonizar os museus? Disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/48390/1/Podemos%20descolonizar%20os%20museus.pdf. Acesso em out. de 2024.
Por EDNA BRENNAND