SEMEANDO A ESCRITA – Espaço aos semeadores: A quem escrevo? por César Fontana

SEMEANDO A ESCRITA – Espaço aos semeadores: A quem escrevo? por César Fontana

César Fontana, 48 anos, é natural de Brasília. Graduado em História pela UnB, leciona na rede pública de ensino do Distrito Federal há 24 anos. Amante da literatura, em especial da poesia, lê movido pela paixão e escreve por força dos fados.

 

Imagem de Ihtar por Pixabay

 

A quem escrevo?

 

Aquele que fala quer ser ouvido. Do mesmo modo, aquele que escreve quer ser lido. Escrevo, em primeiríssimo lugar, portanto, a quem está disposto a me emprestar uns poucos fragmentos do seu maior tesouro: sua atenção sincera. Escrevo a todos que buscam ouvir ao menos os ecos dos meus gritos incontidos. Escrevo àqueles que, declamando em si mesmos as minhas dores e os meus pesares, tornam-se cúmplices deste poeta e, assim, aliviam a sua carga. Afinal,

 

Escrevo com alma

nas almas alheias.

Liberto meu sangue

retido nas veias.

 

Adentro outros mundos,

fechados em si,

e dou que recitem

a dor que senti.

 

O poeta carece desse alívio porque, ao contrário do que muitos pensam, sua luta com as palavras nem sempre é uma atividade prazerosa. Entendo que

 

A palavra que se abriga no papel

é nascida de um impulso primitivo:

o livrar-se do silêncio sufocante

e do mau destino a ele relativo.

 

É do espírito o seu fruto mais pesado!

Grito surdo a cada não alvorecer…

Pelas mãos evocativas de um poeta,

a palavra nasce em dor e faz doer.

 

Desse modo, o poema não dá louros ao poeta. Nas estrofes não há glória. Versos gritam! São pesados! Num certo sentido, escrever chega a ser mesmo uma maldição. Faço coro

 

com Clarice Lispector, para quem o ato da escrita é “(…) uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui.” Por isso, chego a me questionar até mesmo se devo continuar escrevendo – e para questionar-me, vejam! escrevo:

 

O que resta ser escrito

vale o esforço de escrever,

se perdido está o prazer,

se o ofício é tão maldito?

 

Estender a velha história,

tatuando em brancas folhas

a desdita das escolhas…

Há tarefa mais inglória?

 

Imagem de Andreas160578 por Pixabay

 

Escrevo, portanto, àqueles bons conselheiros, que podem me responder se ainda devo externar minha consciência, meus sentimentos, minha vida interior… Ou seja, se devo mesmo gritar minhas palavras num papel. Ademais, levando-se em conta que

 

O grito e os poemas

são expressões de impressões.

Linguagens extremas!,

 

escrevo exatamente para aqueles que só conseguem dar expressão às suas subjetividades valendo-se dos extremos da linguagem – aqueles que fogem do caráter raso dos lugares comuns e do caráter insosso e falsamente equilibrado do chamado “caminho do meio”. Escrevo, pois, aos desequilibrados – e não são muitos os escritores que, hoje, ainda fazem isso; por quê?

 

Falta-nos talento?

Poucas mãos e raras penas

dão-nos acalento.

 

Imagem de Bru-no por Pixabay

 

O poeta também escreve para tentar desvendar (ler) a pessoa do seu leitor. Mas, não raro, o que ocorre é precisamente o contrário: o leitor desnuda (lê) a pessoa do poeta. Assim sendo, escrevo aos que se deixam desvendar pela poesia e aos que procuram enxergar, no poema, o próprio âmago do seu autor. É certo que

 

Os seus versos são paredes, são trincheiras.

Atrás delas, tenta ler o seu leitor.

Entretanto, são de vidro esses poemas

 

— transparentes as estrofes e seus temas —,

de tal modo que o poeta então é lido,

mesmo crendo estar oculto ou escondido.

 

Leem-se, na transparência deste poeta, linhas e mais linhas de rimadas ou brancas nostalgias. É deste modo que escrevo também aos que sentem saudade de algum passado…

 

Quem me dera meu passado visitar…

Libertar-me de escavar recordações…

Descalçar meus pés em chão rudimentar…

Distrair-me entre fachadas e ilusões.

 

ou de “algum alguém”…

 

Haver-me com o silêncio não consigo,

Nas horas alongadas da saudade.

Nos ermos de tão grande escuridade,

Não acho quietação, tampouco abrigo.

E o mal que fala sem dizer palavra

Semeia a consciência e o peito lavra.

 

Tais recordações costumam ser causa e/ou produto de inúmeras feridas não cicatrizadas. Assim, escrevo aos que compartilham dessas minhas chagas.

 

Abriu-se a ferida

que doía no poeta:

a chaga secreta.

 

Meus versos canto também aos que se atiram num canto, desencantados, como que por encanto.

 

Um canto qualquer…

Então, canto ao desencanto

que se me impuser.

 

 

Imagem de Darksouls1 por Pixabay

 

Já me perguntaram:

 

Poeta! Profeta!

Antevês o claro-escuro

do nosso futuro?

 

Meu olhar poético não é oracular. Sou, quando muito, um profeta do acontecido (risos). Não vaticino um futuro onde tudo será mais belo. Não consigo virar as costas para a crueza do mundo real – e para ele não tenho remédio. Portanto, não escrevo para prever o futuro, não versejo para fugir da realidade, tampouco para distrair os que dela fogem. Escrevo para os que compreendem que a poesia é bela e vale por si mesma, apesar do mundo, apesar da vida:

 

Se escrevo, meus males

deixando de lado,

não tento fugir,

sonhar acordado…

 

Só busco os matizes

de um verso bordado

e bordo os instantes

do verso buscado.

 

 

Finalmente, por fazer parte de uma casta de pessoas de alma transparente, que só sabem ser aquilo que de fato são, escrevo a esses meus translúcidos pares que, de diferentes maneiras, sempre revelam (e buscam) tudo que há de verdadeiro por trás daquilo que é aparente.

 

Temos a alma translúcida

tal como os olhares,

os versos e os silêncios.

Sua vocação é dar à luz

as verdades anoitecidas

dentro de si.

 

Se escrever é, de certo modo, uma maldição, a mesma Clarice Lispector nos ensina que “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.”

 

Comigo não poderia ser diferente. Também escrevo para abençoar. Abençoar… Eis, em essência, o ofício de quem traz em si o instinto do verso.

 

Por LILIAN BARBOSA

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