SEMEANDO A ESCRITA – Espaço aos semeadores: Metamorfose da Alma por Miguela Rabelo

SEMEANDO A ESCRITA – Espaço aos semeadores: Metamorfose da Alma por Miguela Rabelo

Miguela Rabelo é artista, professora na Educação Especial, especialista em Direitos Humanos, Educação Especial e Arteterapia; mãe do Heitor (autista nível 3). Autora de “Estações” (coletânea de poesias) e “A Rosa e o Beija-flor” (romance infanto-juvenil). Escritora do blog da editora Valleti Books e coautora em antologias com poesias, crônicas e contos.

 

Metamorfose da Alma

Enquanto a chuva cai serena lá fora, acendo uma vela, profiro uma prece singela, onde peço humildemente pela alma dela… Para que tudo fique bem, pedindo perdão e agradecendo por tudo ao mesmo tempo. Não estou acostumada a passar por isso e um misto de pesar, vazio e náusea acentua na boca com aquele gosto amargo de partida sem retorno para despedidas ou um “até breve”… Então, resolvo colocar em prática o conselho da carta de tarô tirada mais cedo e tento reagir ao oceano de melancolia que pende meu corpo e alma a submergir para o mais profundo de mim mesma.

 

Por isso, começo a estender as roupas no varal e aproveito para degustar o último copo de vinho que estava há semanas na geladeira. E enquanto a vela ainda teima em queimar, ouço saltos descerem as escadas e, na esquina do condomínio, escuto gritos, através da janela do meu quarto… Eram gritos na iminência de confusão, onde pessoas se ofendem e vidros se quebram. Então, crio coragem e boto a cabeça para espiar a confusão e, de frente a minha janela, avisto mais uma vez a avó que diariamente vai até a casa do seu neto autista o embalar em passeios noturnos de carrinho até ele adormecer. E, pelo que percebi, ela nada tinha a ver com os gritos de outrora.

 

Agora a avó já estava retornando a pé para sua casa, sem pressa, pesar, cansaço ou mágoas. Faz assim por fazer, como o melhor que pode oferecer e assim faz, todas as noites. E por isso, peço licença e parafraseio Cazuza ao afirmar: “só as avós são felizes”. Seres iluminados que querem a seu contento verem os netinhos sorrindo e bem, mesmo que em troca ouçam sermões dos pais. Não se apoquentam… querem é fazer as crianças felizes. E fazem como uma espécie de traquinagem sadia, às avessas. E dessa forma ela, como tantas outras avós, não era diferente, sempre fazia o melhor para agradar cada netinho singularmente.

 

E a vela já estava se apagando, assim como ela… Com batimentos cardíacos mais fracos, à espera de um frio boletim derradeiro, onde tudo parece escuro e turvo e não sabemos ao certo quais são as reais expectativas. No entanto, nos esquecemos que, mesmo já sabendo desde a mais tenra idade, que a única certeza que temos nesta vida é a da partida… Não é fácil conceber ou digeri-la simplesmente.

Porque apesar de podermos confiar nesta máxima, ninguém quer ver ou recebê-la em algum momento… E, por isso, vamos tentando enganar a passagem do tempo com procedimentos estéticos, momentos alegres e outros que vamos empurrando para debaixo do tapete para algum dia e, se houver coragem, fazer assim a faxina necessária.

 

E nessa ilusão de sermos imortais, esquecemos que, de fato, não somos e assim vamos vivendo sem pensar nas outras possibilidades de outrora ou das questões mofadas debaixo do carpete das emoções que vamos camuflando por uma vida toda. E crendo nesta ilusão de que as mães são imortais. E que por isso estarão sempre ali a nossa disposição, seja para nos agradar ou para solicitarmos algo a elas.

 

Então, em um dia como outro qualquer, algo acontece e nos é tirado o chão… E percebemos que, infelizmente, e nem sempre, não temos asas para voar, pois elas eram nosso ninho e porto seguro, onde podíamos buscar conforto, consolo e abrigo… E agora, tudo parece escuro e frio e onde nenhum abraço nos cabe como o colo materno de outrora, perdido e agora presente, apenas nas memórias amarrotadas de um passado sem retorno.

Entretanto, o dia amanhece risonho e límpido, com passarinhos a cantarolar na janela, enquanto a vela já se apagou. Como também, qualquer outra possibilidade de voltar no tempo ou resgatar a vida que restava nela. Então, no fim da tarde recebo uma mensagem com uma voz chorosa do outro lado confirmando o já lamentado e esperado… Então a garganta aperta e assim recordo-me dos últimos momentos que tivemos juntas, e ela sempre tentando ser e fazer o melhor para nós, seja com um agrado, um gesto ou palavra amiga, inclusive quando a avistei já desfalecida na UTI, onde pude agradecer e pedir perdão por todos os pesares e dores causadas até aquele momento.

 

Quando saí perdida do hospital, resolvi voltar a pé para casa. A vontade era correr e gritar: “mãe, não me deixa!”. Porém, ela não era minha mãe, mas era como se tivesse sido durante esses quinze anos… E foi com ela também que aprendi a ser mãe e, talvez por isso, em tantos momentos ela não tenha virado as costas para mim, justamente por me sentir como sua filha também, mesmo que torta.

 

Então horas arrastadas se passaram para ser realizado o procedimento para a doação de órgãos, até o dia do seu sepultamento. E quando chegou o dia, saí mais cedo do trabalho e, ao adentrar a sala de velório, com dificuldade cumprimento as pessoas e tento encará-la… Onde já estava no caixão, cercada de pessoas queridas e onde quase não a reconheci…

 

E, de fato, geralmente é isso que acontece, pois a alma não mais habita o corpo e assim este apenas se apresenta como um invólucro vazio do espírito saudoso e vivaz de outrora que nos faz lembrar que aquele ser de luz, apenas não mais habita ali, como uma espécie de casulo rompido para dar liberdade à borboleta que agora revoa leve na natureza que é alimento e combustível para seus voos eternos.

 

E, assim, ao chegarmos no cemitério e termos a última despedida de corpo presente… A terra foi sendo jogada, depois, uma placa de cimento deitada e mais terra despejada como se estivesse voltando de onde veio, como a matéria original na criação de Adão, o primeiro homem que veio do barro. Então, quando nossos olhos ainda estavam molhados a secar pelo sol, nos castigando de calor… Apareceu de maneira mais que inesperada uma belíssima e graciosa borboleta-branca com asas adornadas com fios de ouro que ficou revoando ao nosso redor e pousando em diversas pessoas presentes, encantando assim com beleza e magia aquele momento permeado de saudade e dor.

 

E neste instante todos entendemos que a presença daquela borboleta era muito mais que uma singela mariposa…, mas era, sim, a presença daquela linda e iluminada mulher que tanto amamos e fomos agraciados em ter tido a oportunidade de assim conviver e aprender com todas as lições que ela nos deixou como herança na busca de sermos melhores que outrora. E sua mensagem foi clara como o dia: depois de todo sofrimento por ela enfrentado nesta jornada como confinamento necessário e imposto que precisou enfrentar para maturar suas asas e desta forma quebrar toda e qualquer prisão para assim ascender seu espírito e revoar alto e levemente, degustando o sabor da vida plena de quem tanto trabalhou para conquistar e nos ensinar… Nos mostrando que, de fato, todo sofrimento é apenas um caminho para assim amadurecermos nesta existência, sendo a morte, apenas uma passagem para uma vida renovada e transformadora.

Por MIGUELA RABELO

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