VOZES DO UMBRAL – Corra, Mary, Corra! por Rafael Danesin

VOZES DO UMBRAL – Corra, Mary, Corra! por Rafael Danesin

 Em meio à floresta densa, Mary andava sobre a neve. As copas das árvores se adensavam sobre ela, tecendo um manto negro sob o céu noturno. Contra o vento frio que corria por entre os troncos dos cedros e pinheiros, ela vestia apenas um manto escarlate, com um capuz cobrindo-lhe a cabeça. Sentia os pés pequenos e delicados enfiando-se na neve que cobria o chão. Nas mãos, levava apenas uma cesta com um conteúdo que ela desconhecia. Foi quando ela parou, olhou ao seu redor, e perguntou-se:

 O que estou fazendo aqui?

 Continue andando. Restam apenas 10 minutos…

 – Quem é você? Onde estou? – ela gritou, tentando argumentar.

 Por um momento, a única resposta que ela obteve foi uma lufada de ar gelado que certamente era demais para seu agasalho.

 Mas enfim, a voz monocórdica respondeu:

 O Lobo está vindo. Corra.

 – Lobo…?

 Um rosnado selvagem irrompeu do meio da mata, e um lobo de três metros de altura surgiu. Mary sentiu o mais profundo horror em sua alma e correu, o mais depressa que podia, apesar da neve retardar seus movimentos. Quase podia sentir o hálito quente do lobo atrás de si, cada vez mais próximo. Os galhos arranhavam sua pele, e queria jogar a cesta fora, mas sentia que não lhe era permitido. Enfim, o lobo a alcançou, derrubando-a ao chão. Ela sentiu suas garras cravando-se fundo na pele e gritou, sabendo que aquele seria seu fim.

***

 Mary acordou gritando, ainda com a sensação mortal de sua carne sendo rasgada. Levou algum tempo até ela perceber que estava numa sala cinza com paredes de metal, e ela estava presa a um aparelho cheio de fios, e notou que não podia se mover. Novamente, tentou argumentar.

 – O que está havendo aqui?

 A voz respondeu:

 Você falhou em sua missão. A simulação foi cancelada.

 .Quem é você? Me solte!

 Você será liberada apenas se cumprir seu objetivo – disse a voz.

 – Q-Que objetivo seria esse?

 Cabe a você descobrir.

 REINICIANDO SIMULAÇÃO…

 – Não! Por favor, espera! – ela suplicou, mas era tarde demais.

 E lá estava ela, mais uma vez de volta à floresta, em meio ao frio.

 – Ei! Você está aí? O que eu devo fazer? – ela perguntou. A voz limitou-se a responder:

 Você deve alcançar seu objetivo. Restam apenas 15 minutos.

 Mary tentou algo diferente. Correu para o lado, até a neve tornar-se menos densa. Agora poderia se mover mais rapidamente. Contudo, quando estava prestes a correr novamente, notou que à sua frente havia um abismo enorme. Ao dar meia-volta, viu a silhueta do lobo saltando sobre ela, já com a boca aberta prestes a devorá-la.

 – Merda.

 O animal a agarrou em pleno ar, esmigalhando suas costelas. Ambos caíram no abismo.

 Uma vez mais, estava de volta à sua prisão metálica, com os pulmões arfando o ar devido ao trauma de uma segunda morte.

 Vou tentar um outro meio…

 Novamente na simulação, desta vez ela correu para a esquerda, ao invés da direita. A vegetação prosseguia até um riacho congelado. Lentamente, pisando cuidadosamente no gelo fino, tentava chegar à outra margem. Estava aproximadamente na metade do rio quando ouviu o ruído familiar que o lobo fazia quando corria.

 – Ele não pode me alcançar! O gelo não vai aguentar seu peso.

 Ela estava certa. O lobo saltou sobre o rio, e a fina camada imediatamente quebrou sob si, e a fera afundou. Contudo, o gelo continuou se quebrando. Mary tentou correr, mas o chão sob seus pés cedeu, e de repente ela estava envolta na água impiedosamente fria, congelando lentamente sua carne em um processo doloroso e lento. Teria sido melhor morrer nas presas da fera.

***

 E Mary prosseguiu, pelo menos dez vezes, cada uma delas fracassando. A neve, as árvores, até mesmo uma armadilha para ursos que prendeu seu pé, e todas as vezes acabou morta pelo lobo.

 Foi então que decidiu mudar de tática.

 O lobo está vindo. Corra! – disse a voz.

 – Cansei de fugir!

 Ela sabia exatamente o que fazer. Correndo a noroeste, tomou cuidado para contornar o local marcado. Escondeu-se atrás de uma árvore, sabendo que o lobo a encontraria pelo cheiro. De repente, avistou a fera, ao longe.

 – Venha me pegar, seu filho da mãe!

 A visão apurada do lobo imediatamente avistou sua presa, e correu ao seu encontro. E aconteceu exatamente o que ela previa. Faltando apenas alguns metros para alcançá-la, o lobo foi pego na armadilha. Por alguns momentos, ela apenas saboreou a visão do monstro contorcendo-se e guinchando de dor – quebrando um galho grande e afiado de pinheiro, ela aproximou-se da fera moribunda e cravou a estaca improvisada bem fundo no crânio do animal.

 Ela ainda estava distraída comemorando quando a voz disse:

 Tempo encerrado.

 – O quê?!?

 Quando ela voltou a si, sentia a raiva fervendo no sangue.

 – Eu derrotei o lobo! Não era esse o objetivo?

 Negativo. Seu objetivo é chegar à cabana e entregar a cesta de doces para sua avó.

 – Cabana? Avó?!?

 De fato, ela se lembrava vagamente, mas havia visto uma cabana de relance, em uma das vezes em que estava em fuga.

 – Preciso de mais tempo!

 A voz robótica respondeu:

 15 minutos é o tempo máximo para o teste…

 – Como assim?

 O objetivo deste experimento é testar o jogo Redhood Hunter.

 Então era isso, ela estava ali como cobaia de um teste doentio. Após todas as tentativas que vivenciara, ela sabia muito bem as regras… Não podia correr bem para os lados, tampouco largar a cesta com os doces. Tudo que precisava era chegar à cabana, e estaria livre.

***

 Em meio à floresta densa, Mary andava sobre a neve, uma vez mais. Sentia seu coração palpitando no peito, e a adrenalina começando a correr em seu sangue. Aquela era sua prova de fogo. Era tudo ou nada.

 15 minutos para o fim da simulação.

 – Ok. Vamos acabar com isso.

 Apanhando alguns galhos secos, ela começou esfregar madeira contra madeira, até enfim surgir a fumaça e também a combustão. Criou uma tocha e com ela começou a incendiar os troncos das árvores e a vegetação à sua volta. Em pouco tempo, a floresta estava em um princípio de incêndio, que certamente lhe daria cobertura para fugir. Ela começou a correr.

 Ouviu o rosnado do lobo atrás de si, mesclado ao farfalhar das chamas que consumiam o cenário. Ao olhar para trás, viu a grande fera, com os pelos em chamas, mas ainda em seu encalço.

 – Maldito seja!

 Seguindo pelo caminho que ela conhecia muito bem, saltava sobre a neve densa, a fim de andar mais rápido. O suor escorria-lhe pela testa, e o peso da cesta de doces retardava seu avanço. A cada respiração, o ar adensava-se à sua volta, enquanto aspirava o gás carbônico proveniente da queimada. Súbito, chegou ao local, e passou por ele correndo. Como da vez anterior, o lobo foi pego na armadilha de urso, mas ela não esperou para vê-lo morrer, apenas deu um último olhar enquanto a fera era consumida pelas chamas. Continuou adiante, com os olhos desesperados circundando o ambiente, até que ao longe avistou o que procurava: a cabana.

 Cinco minutos para o fim da simulação.

 – Cala essa boca! – ela disse, e correu como nunca antes, saltando galhos, pedras e arbustos. Ouvia as árvores tombarem atrás de si, devoradas pelo fogo que aumentava cada vez mais.

 Três minutos.

 Ela enfim chegou ao caminho de pedra que dava para a entrada da cabana. Com a floresta às suas costas, agora convertida em um inferno em chamas, ela batia desesperadamente na porta.

 – Vovó, me deixe entrar!

 Um minuto.

 Ela caiu sobre a porta, sentindo o atrito da madeira áspera contra sua pele. Lágrimas começavam a cair de seus olhos, nascidas de uma alma frustrada. Aquela deveria ter sido a última vez. Mas ela sabia que era tarde.

 No entanto, ela ouviu um ruído, e a porta se abriu com um clique. Uma voz bondosa e gentil de mulher disse:

 – Entre, meu docinho. Está muito frio aí fora… Vamos, deixe-me ver o que você tem nessa cesta.

 Simulação concluída.

 Ela estava de volta à sala de metal. As amarras se soltaram, e ela pode sair daquele estranho sarcófago cibernético. Uma porta se abriu ao fundo, e um homem de óculos entrou, com uma expressão de satisfação.

 – Muito bem, Mary. Cumpriu seu objetivo com louvor – ele disse.

 – Então quer dizer que estou livre? – ela disse – espere. Como sabe meu nome?

 O homem deu um sorriso largo, e respondeu, em tom didático.

 – Você ainda não compreendeu, não é?

 – Não compreendi o que? Eu completei minha missão não foi? Agora me deixe ir!

 – Fascinante – o homem disse – Está na hora de saber a verdade.

 – Encerrar experimento!

 Lentamente, o ambiente à sua volta começou a se desvanecer, e tudo se revelou ser parte de uma realidade virtual. Quando todos os bytes haviam se dispersado, restava apenas Mary e o misterioso homem, em frente a um computador.

 Ele começou a dizer:

 – Este é o jogo Redhood Hunter. Nele, os jogadores devem fazer o papel da fera e caçar a menina com a capa vermelha.

 – É mentira. Eu sou uma pessoa, não um programa…

 – Para que o jogo fosse realista, a inteligência artificial teria que acreditar ser realmente uma garota de verdade, fugindo de um lobo de verdade. E funcionou. Estou realmente impressionado, Mary. Agora podemos começar os testes com versão beta…

 – Não, você não pode fazer isso! Eu quero sair! Eu…

 O homem de óculos deu um leve toque com o indicador no computador holográfico, e Mary desapareceu.

 – Terei que fazer alguns ajustes – o homem disse – mas creio que já possa fazer uma cópia e enviar para meus superiores. Vamos vender milhões!

Por RAFAEL DANESIN

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