É curioso que, ao viajar, nos lancemos em uma corrida frenética para conhecer cada museu, mirante, igrejinha, mas que, muitas vezes, deixemos de visitar lugares incríveis que estão ao alcance de nossos olhos. Tendo vivido no bairro do Flamengo por quase toda a vida, eu não apenas ouvia falar da Fortaleza de Santa Cruz – eu também a via, do outro lado da Baía, toda vez que ia à praia. Uma construção impressionante que nasce de um prolongamento da montanha, com muros verticais que brotam do mar escuro.
Após muitos adiamentos, saí para conhecê-la em um domingo qualquer de 1999, um despretensioso passeio que viria a se tornar um dos mais surpreendentes e perturbadores tours históricos que já tive a oportunidade de fazer.
Erguida em 1612 para guarnecer a entrada da Baía e proteger os carregamentos de ouro que saíam rumo à Europa, a Fortaleza de Santa Cruz da Barra é a maior do Brasil e considerada uma das dez maravilhas da arquitetura militar do mundo. Um feito impressionante de engenharia, montado com blocos de pedra talhados a mão e trazidos de Portugal cercado por natureza exuberante para onde quer que se olhe.
E que, claro, serviu como prisão.
A impressão que tenho é que a primeira ideia que ocorre a um grupo de humanos, ao encontrar um lugar paradisíaco, é a de protegê-lo com muros e armas, para que outros humanos não possam acessá-lo. E já que você tem um lugar com muros e armas, porque não usá-lo para prender gente, visto que há humanos inconvenientes em todo lugar? E já que aqueles humanos estão ali, por que não torturá-los?
Os portugueses eram conquistadores particularmente cruéis. Essa foi uma das primeiras informações que o guia, um soldado do Exército, deu ao grupo, e que eu jamais havia escutado, de forma tão clara, em nenhuma aula de história. Mas é verdade. Os portugueses, talvez por serem poucos, impunham-se pelo medo, astúcia e violência. Sobre sua apocalíptica passagem pelo Oceano Índico – ensinada nas cadeiras de escola na forma de nomes, datas e frases rasas como “trazer especiarias das Índias” – o historiador Roger Crowley, escreveu:
“Empregaram a violência para intimidar, como arma psicológica que compensava o baixo contingente de suas tropas: tinham de inspirar medo. Havia mesmo assim algo de loucura em alguns conquistadores portugueses, como Vasco da Gama, um homem extremamente violento. (…) eram homens famintos por riqueza, ouro e espécies, e com sede de poder. (…) Os portugueses trouxeram terror e caos a esse mundo “.
Conquistadores: Como Portugal Forjou o Primeiro Império Global
Uma das torturas preferidas dos portugueses – que Tia Neide, sua professora de história da sétima série não te contou, quando disse que os portugueses traziam escravos da África porque os índios eram preguiçosos – era o merdimboca, que é exatamente o que você imaginou quando leu.
Enfiada garganta adentro com um pedaço de pau.
Adicionado de pedaços de bacon, se você fosse muçulmano.
Tudo bem, entendo, isso pede alguma reflexão. Vai dar uma volta. Te espero aqui.
De volta à Santa Cruz, um dos primeiros lugares do tour é uma masmorra – um buraco do tamanho de uma sala, com teto em arco, paredes mofadas e nenhuma janela.
“Celas subterrâneas, abaixo do nível do mar, úmidas e frias, submetidas ao permanente rigor do vento que soprava forte na entrada da baía de Guanabara e assobiava encanado como um bloco de entrudo pelos corredores internos, num constante convite a infecções pulmonares. Ratos infestavam todos os cantos, o que multiplicava o contágio dos presos pelo cólera-morbo”
Carlos Marchi, A Fera de Macabu
O chão é permanentemente úmido e a única porta é de ferro, sem nenhuma abertura. Há um buraco para ventilação, estreito e em curva, para que não entre nenhuma luz. Os prisioneiros jogados naquela caverna, normalmente corsários franceses e locais inimigos do regime, eram mantidos na escuridão total. A porta era aberta uma vez ao dia, à noite, quando era colocada uma ração mínima de pão e água. Depois de quinze dias sem a menor réstia de luz, os presos eram levados para o pátio principal ao meio-dia e forçados a olhar diretamente para o sol. Ficavam permanentemente cegos.
O tour inclui maravilhas arquitetônicas, como o pátio a céu aberto de trezentos anos de idade sem o menor vestígio de infiltração ou rachaduras e as linhas de canhões, com os buracos na pedra para mirar. Há até a capela onde há 4 cadáveres emparedados, um deles o de uma filha de um oficial que se apaixonou por um cabo e, impedida de continuar a relação pelo pai, atirou-se da muralha para os rochedos lá embaixo.
Eu poderia falar sobre essas coisas, tudo bem, mas sejamos honestos, sabemos porque você está aqui.
A próxima parada perturbadora do tour era a Cova da Onça. Ela foi inicialmente concebida para ser um posto de sentinela, mas, como de hábito, seres humanos com muito tempo disponível começam a ter ideias criativas envolvendo seus semelhantes. Esse lugar contém um disco de pedra no chão e um buraco que dá para o mar, por onde eram supostamente jogados os prisioneiros. O buraco parece pequeno para que uma pessoa passe por ele e, de fato, ele é. Um problema que os portugueses resolviam com a charmosa solução de esquartejar os prisioneiros vivos, antes de atirá-los ao mar.
A Fortaleza é um quartel que funciona normalmente até hoje e o posto de sentinela na Cova da Onça é um dos mais temidos. Como em muitos lugares onde pessoas foram repetidamente submetidas a dor e sofrimento, há uma sensação de atmosfera pesada e escutam-se, nas horas mais escuras da madrugada, gritos e gemidos.
Quando eu era garoto e tinha muito medo de assombrações, me disseram que eu não deveria ter medo dos mortos, mas dos vivos. Hoje, vendo que os vivos esquartejam, torturam e cegam, enquanto que os mortos, quando muito, gritam, sou obrigado a concordar.
Após canhões e paióis, a visita chega às “prisões do passado”, uma sucessão de cinco celas, lado a lado, progressivamente menores, com teto em arco. A maior não tem altura para que um homem fique de pé. A menor só permite que ele fique deitado. O prisioneiro que chegava era colocado na maior, à esquerda, e ia sendo mudado para a cela ao lado, à medida em que ela ficava vaga. Ela ficava vaga porque, após chegar na menor, onde o infeliz passava, em média, duas semanas, o preso era conduzido à forca em frente às celas e enforcado, diante dos demais.
Agora, que você já está lamentando o dia em que o primeiro macaquinho desceu da árvore, coçou sua cabeça piolhenta e se perguntou se não seria uma boa ideia morar numa caverna, temos uma interessante cereja nesse bolo amargo: se você for hoje à Fortaleza de Santa Cruz e fizer o tour – o que recomendo enfaticamente – pouco disso lhe será falado. Muitas histórias não serão contadas e a Cova da Onça, além de não fazer parte do passeio, não será sequer mencionada.
Descobri isso em 2019, durante minha segunda visita à fortaleza. Ao perceber que o guia não estava contando algumas das histórias que eu conhecia, questionei-o. Ele disse que a Cova da Onça havia sido tirada do roteiro e que muitas histórias haviam sido suprimidas, pois algumas pessoas achavam pesado demais. Depois do tour, bati um papo rápido com ele, em particular, e ele me confessou que havia também o problema de Santa Cruz ter sido prisão durante o período do golpe de 64 e algumas pessoas não quererem menção a esse tipo de assunto.
Claro, pois é comprovado que se você não quer repetir uma merda que fez no passado, o melhor que pode fazer é não falar sobre ela.
Por JORGE ALEXANDRE MOREIRA