Os pés do soldado afundavam na neve rosada. Era difícil andar com cinco centímetros de gelo no chão e vinte quilos de equipamentos nas costas. Fazia muito mais força que o necessário só para se manter equilibrado. Não avistava viva alma na rua, muito menos nas casas. Apenas fumaça, corpos e destroços. Os companheiros de batalha ou haviam caído mortos pelo frio, ou por tiros de fuzis e estilhaços dos misseis. Estava sozinho e sem abrigo. O medidor de radiação preso ao braço apitava informando que ele já havia passado do nível de segurança.
Ele olhou para trás e viu aviões sobrevoando a cidade. Fogo, explosões, fumaça… Não existia mais nada lá além de sofrimento e morte. Rezava baixinho para que sua mãe e irmã tivesse conseguido sair a tempo.
Um apito avisando um novo ataque soava na cidade, o som estridente percorria quilômetros sendo abafado pelas explosões dos misseis.
Recuou tentando se esconder entre muros, pedras e corpos. Sentou-se encostado no balanço, fingindo-se de morto. Precisava descansar por uns segundos. Em seguida riu. A risada se transformou em gargalhada.
— Que raios eu estou fazendo? — gritou para o vento. Havia percebido que estava sozinho naquele lugar maldito. — Russos filhos da puta! Malditos!
Um vulto atrás de um carro enferrujado pelo tempo chamou sua atenção. Apontou a arma e esperou. Movimento. Sombra. Mirou. Atirou. Errou.
Um cervo com cinco patas disparou para a mata. Não havia nada ali além de morte e aberrações que o tempo e a radioatividade haviam criado. Desde o acidente, há quase quarenta anos, que desgraçou a vida de uma nação e deixou sequelas eternas nos moradores, fauna e flora local. Pouquíssimas pessoas se arriscavam a chegar perto dos reatores. Quanto mais fundo avançavam, mais perigo. Alguns morriam no local, outros sucumbiam com as alterações provocadas em seus DNA. Ele não tinha o luxo de pensar em sua morte, precisava chegar ao reator 4 antes dos russos.
Ele sabia o fim que o aguardava, mas precisava honrar seu povo, a bandeira azul e amarela que carregava no peito e o nome de sua família. Não deixaria que um louco no comando de uma nação destruísse seu país e toda a Europa, quiçá o mundo.
“Isso é apenas uma teoria da conspiração” — relembrou as palavras do comandante. —
— Se aquele material de corium realmente existir e conseguirem capturá-lo, aquele louco conseguirá controlar todo o mundo. — O presidente falava entre um gemido e outro enquanto os médicos estacavam o sangue da perna que havia sido atingida por um estilhaço.
— Nós iremos comandante — o capitão falou apontando a tropa da qual ele fazia parte.
Naquela mesma noite partiram com seus equipamentos nas costas e muita fé. Sempre acompanhados de Deus e de Nossa Senhora, acreditavam.
— Será que Deus realmente existe? – O soldado se questionava com frequência desde que os amigos haviam caído um a um durante as batalhas. — Ei seu filho da puta, eu tô aqui! —ele gritava olhando para o céu.
Latas começaram a cair dentro de um depósito e ele se levantou correndo para atrás do carro enferrujado. Um tiro atingiu o paralamas do veículo. O soldado se encolheu e atirou de volta sem mirar. Foi o suficiente para o inimigo revelar a localização do esconderijo.
O homem vestido com um traje amarelo e capacete de proteção atirou novamente, mas estava sem munição. Era a oportunidade de o soldado liquidá-lo. Carregou o fuzil, quando se moveu para mirar, viu uma sombra acima dele. Era seu inimigo. O homem se jogou sobre ele o desarmando com o impacto.
De onde ele veio esse filho da puta! — pensou, levando um soco no queixo e caindo para trás, se chocando com a mochila que afundou sob a neve. O homem pulou novamente sobre ele, mas o soldado o empurrou com os dois pés, jogando-o para longe. O equipamento preso ao corpo o impedia de se movimentar com agilidade. Resolveu soltar a fivela da mochila. o homem voltou armado de uma pedra, mas o soldado rodou para o lado e rapidamente montou sobre as costas do inimigo Agarrou a cabeça do inimigo e bateu com ela várias vezes sobre a mesma pedra. O vidro do capacete arrebentou, a roupa rasgou e o homem gritou desesperado.
Agora dois aparelhos apitavam descontroladamente.
O homem correu desesperado para a floresta, enquanto o soldado continuava sua missão, exausto e com o corpo dolorido. Caminhou na neve por uns minutos e despencou vencido pelo cansaço. Perdeu os sentidos por uns minutos.
Acordou com um grito de súplica e dor. Abriu os olhos achando que estava no inferno. Já era a noite e voltava a nevar. Uma luz brilhava ao longe, caminhando para o reator quatro. Eram os russos e ele tinha certeza.
— Vou aí te pegar!
A radiação estava em um nível seguro. Era como se ela andasse e os cercasse para longe da cidade abandonada. Um barulho na mata chamou sua atenção. Olhou para os lados e não conseguiu ver nada. De repente sentiu a nuca queimar e sua visão ficou turva. Caiu na neve gelada.
***
— Você tem certeza? — o soldado abriu os olhos e ouviu uma voz feminina indagando alguém. Estava deitado sobre algumas cobertas dentro de uma das casas abandonadas em Chernobyl.
— Claro que tenho. Eu os vi saindo de Lviv. Era um grupo grande de soldados, pelo visto só restou ele. — A voz masculina e fina respondia a outra, mas aos poucos foi sumindo, dando-lhe a certeza de que se afastavam.
Ele sentou-se com cautela, a cabeça latejava e ao tocar a nuca sentiu um melado nos dedos. Entendeu o que havia acontecido e buscou seu equipamento, mas não estava naquele cômodo. Engatinhou até a porta mais próxima e encontrou sua mochila, o contador Geiger apitava um pouco mais alto.
Der’mo estamos mais perto do reator e eu tô sem proteção. Se aqueles negodyai chegarem na sala 217 antes de mim, tudo estará perdido.
— O que você está falando? — uma menina de uns dezesseis anos apareceu na sala segurando um bebê.
O soldado olhou para ela e ficou espantado ao perceber que ambos tinham algum tipo de deformidade na pele. O pescoço, e braços deles pareciam com couraça de tatu e em alguns lugares minava um líquido rosado. A menina percebeu que o soldado estava espantado com a condição genética dela e do bebê e baixou a cabeça envergonhada.
— O que você quer aqui? — a menina perguntou sem encarar o homem que continuava de quatro a sua frente.
O bebê começou a chorar.
— Estou em missão de resgate preciso recuperar uma coisa muito poderosa no reator 4…
— Você está falando do slonov’ya noga? — a voz masculina e fina surgiu por trás do soldado. Pendurado no corpo franzino de adolescente estava o fuzil Vepr do soldado ucraniano. No pescoço e braço a mesma couraça dos outros dois.
— Quem são vocês? — o soldado perguntou enquanto sentava se encostando na parede.
— Somos irmãos. Esse aí com o fuzil é o Andrei, esse aqui no meu colo é o Nikolai — a adolescente falava chacoalhando o bebê. — Eu sou Polina. Nascemos numa cabana a poucos quilômetros daqui.
— Vocês são russos? — o soldado perguntou levantando-se devagar e aproximando-se da menina. Com cuidado pegou o bebê no colo e o colocou no antebraço, com a barriga voltada para baixo.
— Metade russos e metade ucranianos. O lado do bem é da mamãe. — explicou o menino. — Ele está parando de chorar!
— E onde estão seus pais?
— Mortos… como a maioria das pessoas da cidade — disse a menina admirando o irmão calmo no braço do soldado.
— E vocês estão aqui sozinhos?
— Em plena guerra não há muito o que fazer — concluiu o menino.
— Ainda mais com nossa peculiaridade — reforçou a adolescente. — Como você acalmou ele?
— Tenho primas pequenos, bebês adoram ficar assim. Acho que acalma as cólicas.
— Obrigada!
— Seu irmãozinho é bem novo — observou o tamanho da criança. — Seus pais morreram faz pouco tempo?
— Menos de um mês, quando Chernobyl foi invadida.
— E como vocês estão se virando?
— Tem muita casa abandonada pelos vilarejos da cidade vizinha, não é muito longe. Eu vou de bicicleta de madrugada e volto a noitinha — falou Andrei orgulhoso de si. — Polina cuida da comida e do Nikolai.
— Vocês precisam sair daqui — o soldado dizia preocupado com as crianças. — Vão para o norte, a uma base lá, procure por Sergei, é um homem alto e bem apessoado, ele poderá ajudar a vocês se refugiarem em outro país. Quem sabe Polonia? Romênia?
— Moço, não vamos sair daqui. Qualquer perigo aqui é menor do que as chacotas que farão com nossa aparência lá fora. — Polina ficou arredia.
— A radiação está instável ela logo alcançara vocês…
— A pata de elefante não vai nos machucar! — tranquilizou-o Andrei.
— Ela é extremamente mortal, como não vai te machucar?
— Ela é uma zashchitnyy! — explicou a menina.
— Como assim, uma protetora? — o soldado percebia que o medidor de radiação estava aumentando a frequência.
— Meu pai sempre dizia que o acidente de 1986 era culpa dos homens, que são criaturas gananciosas e más por natureza. — Polina caminhou até a porta e começou a olhar para fora. — Que o universo havia criado zashchitnyy, para proteger os seres vivos da praga que é a ganância.
— E no momento certo ela iria sair para capturar os homens maus — completou Andrei.
— Vocês estão me dizendo que essa energia atômica está caminhando por aí?
Antes que eles pudessem responder escutaram um grito vindo de fora. Outro grito foi ouvido logo em seguida. O soldado pegou sua arma e seu medidor Geiger e saiu.
— Me esperem aqui — ordenou quando estava passando pela porta.
Os irmãos se olharam e não disseram nada.
Do lado de fora, avistou algo brilhante, hora lembrava uma silhueta humana, hora parecia uma fogueira. Os soldados cercavam a criatura e tentavam atirar, mas sem resultado. Um a um iam desaparecendo. O soldado ficou assustado, mas a curiosidade o fez se aproximar do fenômeno.
A forma daquele brilho era meio humanoide, meio labaredas, a cor oscilava entre azul, prato e vermelho. Os soldados russos começaram a gritar todos ao mesmo tempo. Conforme eles se aproximavam da criatura, ela mudava de cor e eles desapareciam. O soldado notou que em certos momentos a criatura tomava uma forma que lembrava a pata de um elefante, ficava assim parada por uns minutos e voltava à forma humanoide.
Todos os soldados e cientistas russos haviam desaparecido, no chão havia uma poeira grossa. O contador Geiger disparou, os níveis de radiação ali eram muito alto. Ele então percebeu que as crianças estavam certas, que a lenda da zashchitnyy era real.
Ele nunca tinha visto algo tão brilhante e lindo. O brilho prateado que queimava seu corpo estava vivo, aquilo tinha consciência e não seria dominado com facilidade. Ele se despiu de suas roupas e lentamente se aproximou da criatura com os braços abertos, deixando que sua energia consumisse sua carne, sua vida, sua alma. Poderia morrer em paz, pois sabia que o mundo estaria protegido por aquela força que os próprios homens maus haviam criado.
Quando o dia amanheceu os irmãos saíram à procura do soldado. Tudo estava quieto, a cidade voltava para a solidão de décadas e apenas alguns bombardeios eram ouvidos à distância.
Polina pisou em algumas roupas jogadas no chão. Era o uniforme do soldado. Ela abaixou-se e pegou a jaqueta, nela havia uma identificação Soldat Isus. A menina sorriu No fundo sabia que ali estariam protegidos do mundo lá fora.