Laura arrasta os pés tortos, um atrás do outro, afastando-se da sala onde o avô é velado. Na varanda, abre a bolsa e verifica o livro de fotografias. O objeto está carcomido. Abraça-o até os dedos retorcidos ficarem vermelhos. E chora.
— Vou te salvar, voinho. — Ela sussurra.
A menina esconde o corpo franzino nas sombras e inclina a cabeça na direção da janela. Mulheres cochicham intrigas.
— O Inferno é o lugar dos suicidas! O padre só veio porque a família do coronel ajudou a construir a catedral.
— Ô raça pra ter morte estranha. Dizem que os escravos amaldiçoaram a família depois de libertados pela Lei Áurea.
— Vejam a neta, enjeitada pelo próprio pai…
As vozes calam quando o sacerdote fala.
Laura inspira forte e caminha. Um corredor de candeeiros seguia até a porteira da fazenda. Desce as escadas de pedra se agarrando ao corrimão e foge da luz. A casa grande e a melodia arrastada, cheia de nomes de santos, ficam para trás. A avó e a mãe estão lá, chorando.
Nas casas abandonadas pelos trabalhadores ouve-se apenas os insetos. A pele arrepia com a brisa fria vinda do rio Cachoeira, das árvores vivas e dos cacaueiros mortos. Ela recua e se desequilibra, os pés serpenteiam no solo lamacento, a cabeça colide com o chão. Dor. O mundo fica fora de foco. Silêncio.
Laura emerge da escuridão.
A névoa espessa devora o mundo. Não fosse a luz bruxuleante, alaranjada, vinda do interior da capela da fazenda, estaria à deriva. As paredes da construção, de longe, parecem transparentes. Tateia a bolsa e retoma a marcha.
Na fachada da construção está grafado em alto-relevo: 1881. A porta de madeira se abre, o ruído das dobradiças percorre o salão. A iluminação interna emana das paredes, agora com contornos definidos. Quatro bancos perfilados abrigam sete pessoas viradas para o altar.
Na primeira fila, uma jovem de tez pálida, vestida de noiva, segura um bebê. No assento à frente, há duas gêmeas: uma à moda melindrosa, com braços e pernas à mostra; a outra usa um tailleur e carrega um livro.
A menina examina os presentes enquanto avança pelo corredor entre os bancos. Todos sorriem, meneando as cabeças. A igreja não tem teto, acima deles o céu estrelado pulsa. O cheiro da mata preenche o local.
Noutra fileira, um homem trajando roupas femininas abraça um jovem loiro. Por fim, vê-se um casal: a mulher negra e o homem moreno usam roupas elegantes.
Têm expressões tristes e olhos negros como um poço sem fundo. Os traços físicos de quase todos, incluindo Laura, são parecidos.
— Filha, aproxime-se. — De traz do altar, o padre estende a mão.
Ao lado do sacerdote, sentado numa cadeira virada para a cruz, encontra-se o avô. Ele chora e pede perdão a Deus.
A voz de Laura sai fraca:
— Trouxe o que pediram…
Ela tira o livro da bolsa e o deposita sobre o altar. O objeto está novo. Na capa, lê-se: Os esquecidos. Os presentes se inquietam. A luz alaranjada se intensifica.
— Ficamos preocupados, pois aí reside a nossa memória. Se ele fosse destruído, seríamos esquecidos e deixaríamos de existir — diz a melindrosa.
— Desculpa, eu não sabia. Eu estava triste… — A menina mira o avô.
— Não se sinta mal, nós conhecemos a rejeição. Somos motivos de vergonha na família: amantes de escravos, pecadores, putas, histéricas, pederastas — fala o homem vestido de mulher.
Laura examina as pessoas reunidas em volta de si e diz:
— Vocês não aparecem nos álbuns da família, mas também não são estranhos.
Os olhos negros voltam à forma original: cor de mel. Laura fica boquiaberta.
— Temos os mesmos olhos. Como dizem as más línguas de Ilhéus: o olhar da loucura! — A noiva embala o bebê.
— Não sou doida! — responde Laura.
— A gente também não. Apenas não fomos o que esperavam de nós. — A jovem de tailleur sorri.
O padre abre o álbum e explica o destino das pessoas fotografadas.
— Um advogado abolicionista alforriou uma escrava e a desposou. Foram mortos e queimados pelos irmãos. Um sacerdote se entregou à dúvida e à luxúria. Esfaqueado por um marido enfurecido, desapareceu sob as águas do porto. Duas irmãs, à frente do seu tempo, exigiam liberdade e igualdade. Violadas e assassinadas, tiveram seus corpos enterrados. Uma jovem professora, enganada por um artista e abandonada no dia do casamento, grávida, foi expulsa de casa. Morreu na beira do rio depois de um parto mal sucedido. Os urubus devoraram mãe e filho. Um militar se entregou ao amor de outro homem. Foram fuzilados e jogados ao mar. Um poeta, atormentado por desempenhar o papel de coronel, queimou seus versos e suicidou-se porque perdeu a fazenda para uma praga.
Laura ouve as histórias e reconhece os protagonistas.
— É hora de se juntar a sua família. — O avô, ao lado da neta, faz-lhe um cafuné.
— Voinho, eu não quero ir!
Laura examina seu corpo e chora: os braços rígidos e as pernas arqueadas agora estão perfeitos. Ela corre até a porta e começa a bater e a gritar:
— Isso é um pesadelo, quero acordar. Me tira daqui!
Os mortos a observam.
— Você tinha um corpo débil e conheceu a repulsa da própria família. Estamos todos unidos pela dor, minha querida. Eu fui o primeiro e você é a última — diz o homem de terno elegante. Ao seu lado, a esposa sorri.
O avô a consola e aponta para a janela. Lá fora é dia.
Homens e mulheres cercam a mãe e a avó. As últimas representantes da família choram abraçadas ao corpo infantil, com a cabeça ensanguentada.
Laura grita:
— NÃO! Eu quero a minha mãe!
O avô mostra a foto da neta ao lado da sua no álbum, ambas com a mesma data de morte, e diz:
— Não tema, meu amor. Elas vão te esquecer, nós não.
Por TOM SOARES