VOZES DO UMBRAL – Viral por Francis Graciotto

VOZES DO UMBRAL – Viral por Francis Graciotto

 Johnny sabia que estava fodido. Antes mesmo de abrir os olhos ou tentar se mexer, sabia que não estava no controle da situação. Sua cabeça doía e a boca seca tinha o gosto que imaginava ter a jaula de um camelo. “Que porra aconteceu ontem?”. Lembrava-se de uma puta festa em um sítio, com amigos e muita bebida, mas não o suficiente para a enxaqueca que sentia e uma amnésia quase total sobre a noite anterior. Sentiu a madeira dura e fria abaixo do seu corpo e percebeu que estava nu, com os braços esticados para cima e pernas para baixo, como uma merda de uma estrela do mar. Seus ombros doíam, então tentou mudar de posição e sentiu os pulsos presos. Olhou ao redor e viu que estava com as mãos e pés amarrados à uma mesa de jantar. Viu também um vulto negro se aproximando de seu pé direito.

 — Você acordou! — o vulto disse com a voz grave e calma. Parecia ser um homem, mas uma luz forte atrás dele impossibilitava-o de ver seu rosto. — Podemos começar.

 — Que porra é essa… — Johnny murmurou. A voz penava a sair de sua garganta seca.

 — João Augusto Vedetti — o homem disse, lendo algo sobre a mesa ao seu pé direito. O filho da puta estava com sua carteira de motorista —, mas seus amigos te chamam de Johnny. Você tem muitos amigos, não é, Johnny?

 Forçou a vista e viu o que parecia ser um bico de pássaro, arqueado e com mais de um palmo de comprimento, saindo do seu rosto. Lembrou-se dos livros de história do colégio: era uma fantasia de médico da peste negra. Vestia roupas pretas, incluindo luvas e uma longa capa, e aquela máscara macabra como uma espécie de ave agourenta.

 — O que você quer?

 — Eu faço as perguntas, Johnny, mesmo que sejam retóricas — o homem fez uma pausa. Ele parecendo estar tentando tirar o máximo de cada momento, enquanto Johnny tentava lembrar-se de quem poderia odiá-lo tanto para fazer uma coisa dessas. — É claro que você é muito popular! Se não tivesse colocado uma máscara em você, nunca teria conseguido te tirar da festa sem levantar perguntas de amigos preocupados, carregando-o dopado daquele jeito.

 — Você me deu um boa noite Cinderela, é isso?! O que fez comigo? — Johnny se contorcia sobre a mesa, machucando seus pulsos e tornozelos nas amarras.

 — Não estou aqui para violentá-lo, rapaz. Só alguém muito doente se divertiria às custas do sofrimento alheio… Você é esse tipo de pessoa, Johnny?

 — Sádico filho da puta! Me solta!

 — Claro que não — o homem continuou, ignorando-o e respondendo à própria pergunta. — Tenho certeza de que se considera um cidadão de bem. Talvez em partes você até o seja.

 — Eu só tava curtindo a festa, caralho!

 O homem se aproximou rapidamente e o surpreendeu enfiando sua cabeça num saco plástico transparente, antes que pudesse reagir ou falar qualquer coisa. Sentiu uma corda apertando em seu pescoço, cortando o fluxo de ar para dentro do saco. Johnny gritou obscenidades e esperneou inutilmente, tentando se livrar do saco de alguma forma, mas o médico macabro o ignorou e continuou falando.

 — Eu sei, eu sei… Você acha que isso não é justo. Realmente não é. Não faço isso por justiça ou vingança, apesar das suas atitudes desprezíveis. Faço isso por eles! — O médico da peste negra apontou para o outro lado da mesa, acima dos pés de Johnny. Mesmo enquanto buscava o ar que parecia não existir dentro daquele saco, olhou através do plástico para onde ele estava apontando. Havia um tripé do outro lado da mesa, com um celular posicionado com a câmera virada para ele. Estava sendo filmado! Johnny continuou se contorcendo, tentando se soltar ou pelo menos fincar os dentes no plástico para abrir uma brecha e conseguir ar de verdade, mas não conseguia nada além de sacudir a cabeça de um lado para o outro em desespero e respirar aquele ar viciado. — É tudo sobre eles, Johnny. A justiça talvez lhe aplicaria uma multa, mas o que bem isso faria para todos? Talvez te obriguem a fazer um pouco de serviço comunitário, mas nada que reverta toda essa situação. O que estou fazendo é mais radical, mas não concorda que passamos do ponto de medidas brandas, Johnny?

 Ele suava e ofegava como se estivesse no meio de uma maratona, mas não havia para onde ir. A situação estava totalmente fora de seu controle, e isso era o mais aterrorizante.

 O médico tirou o saco de sua cabeça e Johnny puxou o máximo de ar que pôde, roncando como um porco, então o maldito enfiou um pano sujo em sua boca. Ainda podia respirar pelo nariz, mas não podia xingar aquele desgraçado tanto quanto queria. Sua cabeça parecia estar prestes a explodir e suas vias respiratórias e o peito pareciam queimar a cada respiração. Nunca se sentira tão mal e vulnerável em toda sua vida.

 — Sabe, nada sobre isso é justo. Pessoas morreram aos milhares hoje, e você será apenas mais uma delas. Amanhã outros milhares morrerão, e se eu encontrar outra festa, outra afronta ao bom senso no momento em que vivemos, adicionarei mais um número a essa estatística. Toda noite, um Johnny a menos. O governo decretou regras, mas vocês acham que eles são uma piada. As autoridades não têm a menor condição de controlar e punir infratores como vocês, então quem sabe o medo de mim os mantenha na linha? Nesse momento nós precisamos jogar com a estatística, não com o sentimento ou otimismo. Você concorda, Johnny? Se eu te deixasse voltar à sua vida, o que você faria diferente? — ao terminar a pergunta, o captor tirou o pano da sua boca.

 — Argh! — Johnny tossiu e pigarreou. Sua boca estava tão seca que beberia seu próprio mijo se aquele maldito o oferecesse, mas sede era a menor das suas preocupações. O saco plástico enxarcado com seu próprio suor e baba que ainda estava nas mãos do maldito era seu maior motivo de pavor.

 — Eu vou ficar de boa! Eu juro! Nada de festa, nada de aglomeração. Pelo amor de d…

 O saco voltou para sua cabeça, interrompendo suas súplicas com gritos e choro convulsivo de quem perdeu todas as esperanças.

 — Vamos torcer para que os outros aprendam com os seus erros — o médico da peste disse. — Agora sorria para a câmera, Johnny! Você vai viralizar.

Por FRANCIS GRACIOTTO

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