NOSSA LITERATURA – Entrevista com Adriano Ferreira Leite

NOSSA LITERATURA – Entrevista com Adriano Ferreira Leite

ENTREVISTA

 

 Adriano Ferreira Leite, professor de literatura, escritor e crítico literário. Licenciado em Filosofia e a tese que defendeu é voltada para a literatura. Com uma lucidez assombrosa, grande habilidade de síntese, clareza, paciência e um amor, hoje, pouco comum, pela arte de ensinar e educar. O vejo, apesar de muito jovem, como um senhor professor, e assim o trato com deferência.

 Portanto, vocês podem ter uma noção da postura, conhecimento e dedicação deste professor. Com pouco tempo no Instagram, seus posts de extrema coerência e muito bem amarrados, alicerçados…ele vem arrecadando uma legião de seguidores sedentos por uma orientação mais séria e isenta sobre a literatura.

 “…Você é uma figura admirável, concentrado no seu trabalho, erudito, para minha surpresa, sendo um rapaz jovem, um homem jovem, um filósofo…”

 Alfredo Fressia

 

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REVISTA THE BARD “…Não há mendigo ou miserável sobre a face da terra que não seja um contador de histórias…” essa tua fala, professor, traz o motivo de abraçares com tanta veemência a literatura?

 

ADRIANO FERREIRA Primeiramente, Cléo: agradeço de coração todas as suas palavras (mais que generosas) e a oportunidade de batermos este papo! Agradeço de coração, pois para mim é uma alegria e uma honra. Sobre o nosso poder de contar histórias, vamos lá… É mesmo a origem de tudo para mim. De fato, quando qualquer pessoa chega em casa e vai dividir os acontecimentos do seu dia com alguém, o que ela faz senão narrar? “Nossa, você não imagina o que aconteceu hoje…” – pode ser um literato, como pode ser um analfabeto ou alguém que despreza a literatura. É sempre igual. É o que somos. Não me parece ser à toa que toda civilização tenha surgido em torno de narrativas mitopoéticas, que Platão recorresse tanto às alegorias e que o próprio Cristo falasse por meio de parábolas. Desta forma, quando abraço a literatura, como você diz, sem dúvida estou abraçando muito mais do que livros, letras e certa pose que um ou outro autor possa ter feito. Não é só uma coisa entre homens e mulheres, mas algo que deita raízes em mistérios que nem mesmo os filósofos entendem completamente – até hoje não se explica, aliás, como exatamente nosso cérebro dá o salto do balbucio e das vocalizações dos primeiros meses para o da formação de frases completas e complexas. Em suma, a origem da linguagem é uma incógnita. É isso o que abraço por meio da literatura; é o que todo ser humano abraça ao narrar em vez de calar. Acredito que o fazemos, aliás, não com os braços, mas com as faculdades mais elevadas da alma.

 

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REVISTA THE BARD Se o poder da literatura está em alimentar a formação do imaginário, e é esse mesmo imaginário que retroalimenta a literatura; e esse poder depende de vários pontos, desde o nível de letramento de cada um, até o quanto a pessoa está mergulhada em ideologias; é fato, que o nosso imaginário vai “mal das pernas” (nem quero aqui criticar a literatura em moda, versões politicamente corretas…enfim, evito a fadiga). Então, como romper com esse módulo vicioso de leitor passivo e se propor ativo, decidir entrar para a “Grande Conversação” (termo de Mortimer Adler), que é passar a dialogar com os clássicos?

 

ADRIANO FERREIRA Fascinante a sua observação de que o imaginário e a literatura se retroalimentam. É perfeita! Também sinto que ela retoma um pouco do que conversamos acima, não? Afinal, sempre que subimos um pouco no diálogo acerca da linguagem, da comunicação, do imaginário, do mitofundador e afins, não parece que nos aproximamos cada vez mais de um mistério? A maravilha do mistério. Por outro lado, também é verdade que nosso olhar e nossa atenção podem se viciar a ponto de o mistério se tornar imperceptível. Quanto ao letramento, só muito recentemente ele foi proposto de modo universal, de tal maneira que antes disso as pessoas comuns se maravilham com outras coisas (também ligadas à linguagem, sem dúvida, como a dramaturgia e a música). Já as ideologias, realmente são uma construção historicamente recente e que, de verdade, espero que sejam superadas e se tornem apenas um ponto no retrovisor, um breve momento de vergonha para nós e de lamento para as próximas gerações. A ideologia esquematiza tudo e destrói a condição humana de base, que é a do mistério de que vínhamos falando. Se as respostas estão todas dadas e os seres humanos podem ser divididos, assim em bloco, entre bons e maus, certos e errados, dignos e indignos, então realmente estamos sob o regime da lei do mais forte, e tudo se tornará o barulho frenético da politização dos foros mais íntimos da vida. Diante disto, já que a alfabetização e o letramento se popularizaram, vejo então uma grande oportunidade: a de nos tornarmos leitores ativos e, como você lembra muito bem, entrarmos de fato na Grande Conversação de que falava Mortimer Adler, um dos maiores pensadores e educadores do século XX. O modo como romper com a ideologização da própria condição humana é, primeiramente, identificar a falsidade de tudo isso. Para tanto, basta prestar atenção ao redor e ver que as fórmulas prontas não explicam nada. São uma farsa. Puro barulho. É preciso recuar um pouco. Silenciar. Reabilitar a sensibilidade natural. Voltar a ter gozo diante do Belo e reverência diante do Bem. A partir daí é que a Grande Conversação começa a fazer sentido para a pessoa, e esta percebe que Machado de Assis e Cecília Meireles, Guimarães Rosa e Clarice Lispector são aqueles que realmente têm o que dizer. Eis aí algo possível e que acredito que todos os homens e mulheres deveriam buscar, como a um verdadeiro tesouro.

 

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REVISTA THE BARD A tua primeira crítica literária foi sobre a obra do poeta uruguaio Alfredo Fressia, uma das maiores vozes poéticas da América Latina. O artigo se chama “A poesia cosmovisiva de Alfredo Fressia”. Ele gostou muito, inclusive traduziu para o espanhol e foi publicado na Revista La Otra. Pode-se dizer que tu começaste com dois pés direitos (risos de nervoso…essa história é muito show! Assisti a live que fizeste com ele, me emocionei muito, foi tudo de bom, parabéns!). Nos conte esta façanha, professor, e também nos explique o que vem a ser “artistas cosmovisivos”?

 

ADRIANO FERREIRA Alfredo Fressia foi para mim um professor, um amigo e um modelo sem tamanho. Eu o conheci há cerca de dez anos, no Mosteiro de São Bento; minha vida seguiu por outro caminho até que decidi ir atrás dele novamente. Depois disso, não chegamos a um ano e meio de convívio e ele veio a falecer, em 7 de fevereiro do ano corrente. Não tenho palavras para descrever essa perda, que ainda por agora me toma a atenção e o afeto todos os dias. Afora esse contato pessoal, a envergadura de Fressia é mais do que conhecida e dispensa explicações. A honra que tive foi a de aplicar minha Teoria da Tríade Sistêmica (TTS) a obra tão importante e receber, do próprio autor, a confirmação do quanto essa tese vem para ajudar a mitigarmos um pouco da mediocridade em que a crítica literária se deixou chafurdar. “Você penetra em coisas que já não têm voz hoje em dia”, é o que o Poeta mais me dizia. Ao mesmo tempo, é claro que elas estavam todas na poesia dele próprio e não apenas no meu olhar. Isso já nos encaminha para o que sejam os artistas ou autores cosmovisivos: aqueles cuja obra chegou a atingir uma visão de todo, perscrutando não apenas aspectos superficiais ou incompletos da condição humana, mas sim o que seja a própria aventura humana na face da Terra. De fato, Fressia chega a um ponto em que cada verso seu é capaz de sintetizar uma cosmovisão inteira, permitindo deduzir dali a visão que ele tem de corpo, de caráter, de espaço, de tempo, de história, de política (também, é claro), de linguagem, de lógica e sobre tudo o mais que se encontra debaixo do sol e para muito além. Nada obstante, em seu primeiríssimo livro publicado, ele, ainda aos vinte e pouquinhos anos, fala da “más antigua cruz que está cayendo”, e todo o restante de sua vida e obra é mesmo um esforço hercúleo no sentido de assimilar uma outra cosmovisão que não a cristã; uma de recorte oriental que, grosso modo, afirmará não o Ser, mas sim um não-Ser. Basta dizer isso para vermos que sua obra sintetiza a histórica ocidental dos últimos séculos, como algo que se intensificou bastante nas últimas décadas. Enfim, a análise da TTS busca desencavar justamente esse tipo de categoria – nos textos que realmente tragam uma realização à altura, é claro. Fressia é um gigante, um dos maiores poetas da América Latina e, certamente, um dos poucos que entenderam em profundidade aquilo por que nosso tempo está passando. Creio que não será possível compreender a vida espiritual de nosso continente daqui alguns séculos sem recorrer aos versos principais desse grande uruguaio.

 

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REVISTA THE BARD Professor Adriano tens uma fala que chama atenção para os autores modernos, não modernistas. O que isso quer dizer?

 

ADRIANO FERREIRA Mas veja, Fressia é um excelente exemplo disso. Como vem a calhar! Quem mais montado nos tempos que correm do que ele (que, aliás, em termos políticos era ativamente de esquerda)? Ao cultuar a forma ele dizia que estava sendo humilde, e no verso livre algo como um rebelde. Também fazia questão de lembrar que “tradição” é “traição” – de fato, se você não faz mais do que reafirmar a tradição, sem personalidade, anula-se a si mesmo e não deixa marca nenhuma, o que é totalmente estranho à arte que se preza. Em suma, o modernismo é mania, é afetação, é força que vem de fora; o moderno é a verdadeira originalidade, é a luz do gênio, a força que vem de dentro e nos ajuda a compreender melhor o que está acontecendo lá fora, no caos do mundo. Sempre que o que vem de fora fala mais alto do que o que vem de dentro, temos péssima arte. Machado de Assis é nosso primeiro moderno, sem ele o Brasil ainda não teria entrado literariamente no eixo da civilização ocidental (que é o nosso berço); mas pessoas desonestas celebram a Semana de 22 como se ela é que tivesse feito isso. Besteira. Para o nosso bem, o primeiro momento modernista nacional foi superado pelo segundo e pelo terceiro que, estes sim modernos, nos deram Graciliano Ramos e Cecília Meireles, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, entre tantos outros tão maiores que Mário e Oswald. Pouco depois, quando da afobação política de JK e Niemeyer, vimos fenômeno parecido: os irmãos Campos são tipicamente modernistas, e o pedantismo concretista há de ser lembrado apenas por acadêmicos que apreciem tais hermetismos. Já um Ferreira Gullar, que abandonou e engoliu o movimento em questão, mostrou sua capacidade de ser moderno – ainda que Gullar tivesse uma cosmovisão igualmente pessimista e também almejasse experimentações com a língua. Veja como não se trata de cosmovisão a arte, mas sim de caráter! Isso deixa claro que o autor verdadeiro sabe que não existe copa sem tronco e sem raiz, por isso sua obra sempre estará lá para dar frutos, em vez de secar e cair.

 

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REVISTA THE BARD Professor, um pedido pessoal, explique para mim, meus colegas e nossos leitores aqui na The Bard, a necessidade de se ter um mentor para quem quer escrever literatura e para quem quer ler literatura?

 

ADRIANO FERREIRA Essa é uma excelente questão. Tenho para mim que a arte literária tem um aspecto iniciático. Fico imaginando alguém que entra em uma sinagoga, uma mesquita, sem jamais ter praticado ou estudado essas religiões. Naturalmente, a pessoa verá belos elementos, da arte ali presente até os gestos daqueles religiosos, mas é certo que ela não entenderá nada. A literatura tem um pouco disso, não só no sentido em que Jorge Luís Borges colocava, de que para ler um único livro é preciso ter lido todos os livros, pois esse é o sentido da erudição. Mas sim no sentido existencial profundo, no sentido biográfico de que nós precisamos aprender a ler desde onde o autor escreveu. Para os escritores que dialogaram com a tradição e plantaram sua arvorezinha nesse imenso jardim, o que estava sendo feito por eles era mortalmente sério. Portanto, o leitor profano que não percebe essa seriedade, passa os olhos mas não lê de fato. Veja, é possível ser leitor há anos, rato de biblioteca, professor de literatura ou mesmo escritor profissional, sem jamais ter dialogado corretamente com Homero, Shakespeare, Machado. Assim como é possível ocupar os bancos da igreja por décadas sem jamais chegar a arranhar o propósito da santidade. Aí é que entra o papel do mentor. Se há uma iniciação a ser feita, há também um mentor a ajudar nesse caminho. Ele pode ser o próprio autor, caso o leitor seja suficientemente atento e dedicado; pode ser um crítico que ajudará o mesmo leitor a enveredar pelas sendas mais tortuosas de um livro; pode ser um professor de oficina literária e cursos afins. Cabe a cada um identificar em que estágio e nível de necessidade se encontra, confessando para si mesmo suas limitações e a que distância se está de dialogar seriamente, repito-me, com aqueles que realmente têm algo a dizer – os verdadeiros exploradores da aventura humana.

 

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REVISTA THE BARD Nos fale de teus projetos dentro da literatura, inclusive teu livro que sairá este ano, e por favor, deixa uma mensagem de incentivo para nós e nossos leitores, que somos aspirantes à escritores?

 

ADRIANO FERREIRA Tenho o projeto da TTS (Teoria da Tríade Sistêmica), que venho aplicando a alguns poucos medalhões ainda vivos entre nós, como também a uma geração incrível que está aí, surgida sobretudo na esteira de Bruno Tolentino e Olavo de Carvalho, que dos idos de 1990 para diante tentaram melhorar algo na realidade cultural de nosso país. Já meu livro que sairá este ano é o romance “O Bode de Azazel”, projeto a que me dediquei incansavelmente e que, espero, renderá bons frutos culturais. A mensagem de incentivo que deixo, se é que estou habilitado para tanto, é a de que as letras podem muito mais do que imaginamos em um primeiro momento. É no depósito mitopoético e literário de um povo que está o seu verdadeiro tesouro, aquilo por que vale viver e morrer – e que de fato nos ajuda a viver e a morrer. Ora, a Grande Conversação é para todos, de direita e de esquerda, ricos e pobres, homens e mulheres, idosos e crianças. A ideia mais hedionda que pode haver é a de diminuir tudo à política e aos acontecimentos imediatos, sufocando nossas consciências e obrigando as biografias a serem escritas como se fossem uma mera contingência matematizável. Não são. São personalidades maravilhosamente individuais e ontologicamente irrepetíveis. Com isso, concluímos no ponto onde começamos: o narrar é o que há de mais propriamente humano. Narrando Deus criou e resgatou o mundo; narrando os povos escrevem sua História; narrando os autores se imortalizam e narrando, por imitação, é que damos sentido às nossas vidas.

Por CLEÓPATRA MELO

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