CONTOS E MINICONTOS – Doçura na boca por Cristina Gomes

CONTOS E MINICONTOS – Doçura na boca por Cristina Gomes

 Ana mudou-se para o apartamento ao lado do meu.

 Transbordava alegria e seu sorriso tinha o brilho do sol nascente.

 Logo fizemos amizade. Ela contou-me do casamento, da festa, das juras de amor, do marido tão amoroso e das promessas de felicidade. Fazia tempo que estava sozinha no andar. Os vizinhos tornaram-se raros num edifício tão luxuoso. 

 Como ela ficava só o dia todo, convidou-me para um café e pude conhecer o lar do casal.

 Finamente decorado com móveis, tapetes e objetos caros, o local irradiava bom gosto.

 Ela confessou que tudo fora arrumado pela família do marido. Ela era de origem humilde e pouco se importava com a tradição e a nobreza. Estava feliz e isso bastava.

 Pedro Ricardo era generoso e a mimava de todas as formas. Em troca, ela se derretia em sorrisos, beijos, juras e carícias. Vivia para fazê-lo feliz, pois era assim que se sentia.

 O andar inteiro era perfumado com a alegria daquele amor e eu aproveitava a inspiração para escrever. Aquela união era perfeita.

 Dois anos passaram rápido e a euforia do começo foi-se esvaindo. Ana, que era sol, tornou-se minguante, lua sem cor. Pouco falava, parecia que o medo era companhia constante. Sempre que a encontrava no corredor, estava agitada, apressada e torcendo as mãos numa aflição insistente. Passamos a conversar raramente.

  Numa manhã de inverno, enquanto tomava sol na varanda, Ana bateu na porta. Chorava lágrimas assustadas. Tremia de frio e tinha marcas no rosto e nos braços.

 Apavorei-me. Fiquei sem reação ao ver pobrezinha naquele estado. 

 Haviam brigado. O marido tornara-se autoritário e violento. Ele tem ciúme de mim, controla meus passos, o dinheiro, o celular, as roupas que visto, até o que devo falar quando estamos com os amigos dele. Não posso sair de casa, ir à academia e conversar com você. Diz que é uma escritora viúva e intrometida.

 Ofereci um abraço silencioso. Era o que cabia naquele momento.

 Preparei um café forte para animar aquela criatura sentada no meu sofá. Era tão frágil. 

 Ela havia se perdido de si mesma. Não era mais dona de sua história. Vivia um relacionamento unilateral, presa numa coleira social, onde representava o papel exigido pelo dono. Seu dono. 

 Com o café nas mãos, sentei e esperei. Deixei que chorasse até a última tristeza e pedi que contasse tudo. 

 Ana respirou mais calma e despejou toda a humilhação que vinha sofrendo. Os gritos, a pressão psicológica, as ordens, os tapas, empurrões, enfim, tudo que estava sofrendo.

 Só então, olhando bem para ela, pude constatar que tornara-se um animal ferido e dependente de um amor-cativeiro. Uma criatura sob domínio.

 Fiquei ouvindo em silêncio. Vou te ajudar. Está disposta a deixar seu marido? Sim, quero novamente tomar posse da minha vida, vou largar tudo, quero trabalhar. Quero voar livre e me reencontrar, mas não sei o que fazer. Não tenho dinheiro e fico apavorada ao pensar que Pedro pode me machucar ainda mais se perceber minhas intenções. Estou descobrindo um lado violento dele.

 Tenho uma casa na praia. Você pode ir para lá e recomeçar. Pedro nunca vai te encontrar.

 Ana gostou da oferta. 

 Sugeri que voltasse ao apartamento e recolhesse o necessário. Eu precisava dar uns telefonemas e arranjar tudo.

 Ela me abraçou e sorriu com gratidão.

 Acompanhei-a até o hall e pedi que agisse de modo natural para não levantar suspeitas.

 Voltei e peguei o telefone. Disquei e esperei que meu sobrinho atendesse. Contei tudo o que havia acontecido e o meu plano. Pedro Ricardo, do outro lado da linha, estava eufórico.

 No quarto, Ana colocava umas roupas na mochila e o fazia com tanto medo e pressa que derrubou um porta-retrato. Ao pegar o objeto, percebeu que atrás da foto do casal, havia outra dobrada. Era a amiga do 512. Mais jovem, mas era ela. Abraçada a um lindo rapaz e Pedro Ricardo com um troféu ao lado deles. Os três pareciam uma família.

 Apavorada, arrancou a foto da moldura e leu no verso: “Obrigada, meus tios, pelo apoio. Essa vitória é para vocês.”

 Ana sentiu o mundo rodar e caiu na cama. O que significava aquilo? Sentiu vontade de ir ao apartamento da vizinha exigir explicações, mas o medo a segurou no lugar.

 O que fazer agora? Lembrou a história contada pelo marido. Fora criado por uma tia que há muito não via. Ana era órfã, não se ligava em histórias de família e desde que o conheceu, ele vivia sozinho. Quase nunca falavam de parentes. O mundo era só os dois.

 Pedro Ricardo chegou irritado. Foi logo falando que não queria ouvir a voz dela. Jantaram em silêncio. Ela pensava na vizinha e no mistério que envolvia tia e sobrinho. Ele, na sede de poder que aquela mulher lhe inspirava. Gostava de ser dono dela.

 Deitaram-se como estranhos e quando ela acordou já passava do meio dia. Estava sozinha.  Atordoada, levantou ao ouvir batidas na porta. A vizinha trazia a chave da casa e algum dinheiro. Não tenho muito, só algumas economias, mas dará para chegar lá. Aqui está o endereço. Um ônibus parte em quarenta minutos. Vá agora, enquanto há tempo. Obrigada por tudo que está fazendo por mim. Vou trabalhar e pagar o dinheiro que me empresta agora. Mandarei notícias.

 Pegou a mochila e saiu apressada. Precisava fugir daqueles dois. Mais do que nunca sabia que sua vida estava em perigo. Só não conseguia ligar os pontos, fazer a conexão.

 Na rodoviária, Ana pegou um ônibus para outro destino e desapareceu.

 Pedro Ricardo acordou muito cedo e orientado por mim, seguiu viagem para o litoral deixando a esposa dormindo. Quando Ana chegasse, ele estaria esperando e a traria de volta.  Naquela família, nenhuma mulher tinha o direito de viver longe das ordens do marido. Ninguém fugia. Era uma família tradicional. Uma vez na família, para sempre nela.  O plano foi perfeito desde o começo: A tia morar no prédio e vigiar Ana, fingir amizade e compaixão.

 Era a segunda vez que uma mulher tentava fugir dele sem sucesso. A esposa anterior serviu-lhe por um bom tempo, depois acabou morrendo no parto, feito às pressas, no sótão. Ana foi um grande achado: linda, jovem, inocente e sem família. Estava radiante com seu novo brinquedinho.  

 O plano era perfeito e com ajuda da tia tudo acabaria bem para ele. Talvez até acorrentasse Ana quando voltassem para casa, assim ela nunca mais tentaria fugir. O sótão estava vazio há muito tempo. Carecia de nova moradora.

 No final, ele sempre conseguia o que queria.

 Aumentou o volume do carro e cantarolou sua música favorita. Dirigia feliz e sem pressa. Ana seria sua para sempre. O sabor da tortura era doçura na sua boca

Por CRISTINA GOMES

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