Você conhece a sensação.
É como despertar, só que não. Algo em você desperta, mas não tudo. A consciência chega ao corpo, mas falta algo, pois não consegue movê-lo. Nem um dedo. Nem uma pálpebra. Você sabe que essa é a chave. Que se conseguisse mexer aquele dedo, aquela pálpebra, o encanto se romperia. Mas não consegue. Nem com todo o esforço, toda sua concentração.
E diante dessa incapacidade, aquele corpo, sua morada, começa a parecer mais e mais com uma prisão. O desejo de mover se torna urgência. Terror. Até respirar parece difícil. E o mais estranho: não é como se você perdesse o contato, como se seu corpo não estivesse lá, muito ao contrário. É possível sentir cada reentrância, cada centímetro quadrado de pele com quase dolorosa nitidez. Então, súbito, como começou, termina. A boca se escancara e o ar entra no peito, o corpo se dobra, os olhos abrem. Só resta, num lugar mais fundo que o fundo da garganta, o gosto estranho da experiência.
Já tive muitos episódios de paralisia do sono. Há anos, eles não ocorrem e tudo bem – não é algo de que se sinta saudades. Um ponto estranho é que a maioria deles se agrupou em dois períodos distintos da minha vida, separados por quase dez anos. Períodos que não poderiam ser mais diferentes entre si.
Outra coisa estranha é que experimentei coisas durante esses períodos.
Exceto que nem sempre o final da experiência é tão inócuo.
EXPERIÊNCIA 1 – O HOMEM NA BEIRA DA CAMA
Era o começo do Séc. XXI, eu morava sozinho em um grande apartamento caindo aos pedaços e a vida era louca. Era usual eu chegar da noite, tomar banho e partir para o trabalho. Grupos de pessoas chegavam comigo da balada de 6ª e saíam na tarde de domingo, quando saíam. Minha geladeira só tinha líquidos.
Era um apartamento velho e cheio de história. Gente sensitiva sempre via coisas ali e o interessante era que pessoas que não se conheciam e não haviam se encontrado relatavam ver as mesmas coisas. Mas isso é para outro post. O assunto de hoje é paralisia do sono, que foi algo que comecei a ter, naquela época, de uma hora para outra.
Não era toda noite, mas quase. Eu dormia em um pequeno quarto quadrado, em um colchão de casal que ficava no chão. Não via necessidade de cama, a não ser para aumentar as reclamações de minha vizinha de baixo, que não eram poucas. A porta do quarto ficava à minha direita e, ao longo da noite, eu quase sempre virava de lado, ficando de costas para ela.
Os episódios de paralisia do sono desse período, tiveram uma diferença crucial, de todos os anteriores: havia alguém atrás de mim. Não na porta, mas um passo para dentro do quarto, na beirada do colchão. Uma figura grande, escura, elevando-se acima de mim. Eu a sentia lá, mesmo com os olhos fechados. Sabia que ela me olhava, mesmo com seu rosto oculto nas sombras.
Comecei sentindo muito medo, mas a experiência se repetiu tantas vezes, ao longo de tantas noites, que, embora o medo não passasse, comecei a ter raiva, também. Daquela criatura que me assediava, que me observava, sem nada dizer, sem nada fazer. Insondável, como se esperasse algo, como se fosse minha obrigação descobrir sua mensagem, seus intentos.
Eu queria que aquele tormento acabasse e algo em mim disse que a única forma de fazer isso era enfrentando a coisa. Fiz de meu objetivo vê-la. Encará-la. Preparava-me antes de dormir. Concentrava-me. Visualizava-me levantando da cama e pulando sobre ela, gritando com ela. Mas nada. Quando a madrugada vinha e a hora da coisa chegava, eu permanecia impassível, parado, como um morto.
Quando conseguia descerrar os olhos e me virar, por mais rápido que eu fizesse isso, não havia nada lá. Algumas vezes, no escuro tive a nítida impressão de ver uma sombra retroceder, esconder-se entre outras sombras.
Após semanas disso, ocorreu-me usar minha ferramenta de exorcismo, desde sempre: escrever.
Ataquei o teclado do computador e em menos de quinze dias, produzi um roteiro de filme sobre um homem que trabalha em um hospital psiquiátrico e que começa a sonhar com uma figura alta, escura, parada ao lado de sua cama. Não sei porque escrevi um roteiro, em vez de um conto. Talvez, porque roteiros sejam mais fáceis e eu quisesse exorcizar aquela coisa de meu sistema o quanto antes. Ela era como um pedaço de carne entre os dentes após um dia inteiro. Doía, incomodava, cheirava mal.
O título do roteiro é O Homem Sem Rosto. Sim, porque uma coisa que percebi, durante essa experiência, era que o rosto da coisa não estava oculto nas sombras. Ele era sombras. Não havia rosto nenhum.
O que quer que o Homem sem Rosto quisesse, ele deve ter conseguido, pois, depois que escrevi a última linha, ele nunca mais apareceu.
É mais um de meus trabalhos obscuros que precisa de um monte de revisões. Talvez, um dia, você o conheça.
Continua na próxima edição com o caso 2 – Um beijo na madrugada.
Por JORGE ALEXANDRE MOREIRA