RESSONÂNCIAS DO FOLCLORE NA POESIA INFANTIL BRASILEIRA
- Considerações Iniciais
O folclore sempre foi fonte de inspiração para os mais diversos discursos artís-ticos, uma vez que traz, em seu cerne, a essência humana que singulariza cada povo.
No cancioneiro tradicional brasileiro, destaco, de modo especial, o acervo co-nhecido como CANTIGAS DE RODA. Trata-se de um repertório que, durante séculos, foi lazer familiar que envolveu adultos, crianças e jovens em idade casadoira, o que jus-tifica a recorrência da “procura do par”, tão usual nesse gênero de cantigas; para exem-plificar, segue uma estrofe que circula em várias canções e, tal como um camaleão, ga-nha as cores da melodia local da região: “Sozinha eu não fico, nem hei de ficar, pois tenho ‘fulano’ para ser meu par”.
Com o tempo, as formas de lazer de jovens e adultos foram diversificadas, fican-do a vivência das cantigas de roda como prática quase exclusiva das crianças.
O encantamento das canções de roda, muito provavelmente, reside na singular comunhão de linguagens, em que ocorre o entrelace dos discursos: verbal, melódico e gestual. A união entre palavra, melodia e gestos fortalece as brincadeiras cantadas, enquanto manifestação genuína do pensamento humano.
Tais manifestações implicam matrizes milenares, indo desde os rituais de socie-dades primitivas, passando pelo nascedouro da arte, na Antiguidade Clássica, e chegan-do aos nossos dias com a força avassaladora de quem ultrapassa a barreira do tempo e do espaço.
A brincadeira é a espinha dorsal das cantigas de roda, e é o viés lúdico que os poetas evidenciam, ao estabelecer pontes alusivas graciosas e oportunas com o nosso ri-co cancioneiro tradicional.
Presenciamos uma natural tendência à substituição do caráter doutrinário — no-tório em antigas antologias de poemas dedicados à infância — por uma literatura com-prometida com a ludicidade e o despertar do imaginário, oferecendo alma nova ao re-pertório poético direcionado aos pequenos.
É sobre essa poesia — rica em imagens, recortes e alusões — oriunda de reta-lhos do cancioneiro tradicional, que trataremos neste breve estudo, apontando obras em-blemáticas da poesia brasileira para crianças.
2. Na Passarela, Personagens Em Trânsito…
Os personagens das cantigas de roda visitam poemas, transitando com especial desenvoltura e autonomia suficiente para contrariar ou refazer o texto verbal das canti-gas originais.
A canção “Atirei o pau no gato” — melodia conhecida de ponta a ponta do país (contando com especial favoritismo das crianças) — serve de mote para o poema de José Paulo Paes, que exemplifica, com um desfecho inusitado, o rumo que a canção po-de tomar, sob uma nova ótica… José Paulo Paes, em sua releitura, intitula o poema de “Acidente”:
ACIDENTE
Atirei o pau no gato,
mas o gato não morreu,
porque o pau pegou no rato
que eu tentei salvar do gato
e o rato
(que chato!)
foi quem morreu…
(PAES; 1984:32).
Convém salientar que o poeta faz um recorte do trecho inicial da cantiga e pros-segue a criação validando somente esse recorte. Ignora, por exemplo, a presença de Do-na Chica, porque para ele interessa o motivo inicial da canção. A mudança de foco — do gato para o rato — propõe um novo jogo lúdico, mas preserva a ponte notória e ime-diata com a narrativa original da canção.
Interessante notar o tom piedoso que utiliza o poeta, ao mencionar a morte do ra-tinho (nos três últimos versos); o apelo emocional é um forte atributo da poesia, em es-pecial, aquela destinada aos pequeninos.
Brincadeira similar propõe o poeta Elias José, com o poema “História Embru-lhada”, que faz alusão à mesma cantiga de roda. Nesse caso, a releitura inclui o “pato” que, assim como o “rato”, explora a rima e utiliza a semelhança sonora para estimular o brinquedo com a palavra.
Elias José utiliza um processo diferente do usado por José Paulo Paes; o poeta não apenas conserva os personagens citados na canção, em seu poema (com o acréscimo do pato), como também desenvolve uma narrativa paralela e inovadora (uma outra his-tória), o que justifica, plenamente, o título “História Embrulhada”. Vejamos:
HISTÓRIA EMBRULHADA
Atirei o pau
no gato-tô
mas acertei no pé
do pato-tô
Dona Chica-ca
admirou-se-se
do berrô, do berrô
que o pato deu.
Ouvindo de Dona Chica
a risada-da,
o pato ficou pirado-dô
e atacou a Dona Chica
de bicada-da.
Com dor e humilhada-da,
Dona Chica achou que foi o gato
que armou a embrulhada-da
e foi nele de paulada-da.
O gato, muito esperto-tô,
caiu fora da jogada-da.
E eu, um pato-tô,
levei a paulada-da.
(JOSÉ; 1996)
Ps.: Para efeito comparativo, segue o texto verbal e a partitura da canção original:
ATIREI O PAU NO GATO
Atirei o pau
no gato-to.
Mas o gato-to,
Não morreu-réu-réu.
Dona Chica-ca,
Admirou-se-se.
Do berro, do berro,
Que o gato deu.
Novamente, é com José Paulo Paes que embarcamos em mais um passeio, sain-do do território das canções para o gramado da poesia… Desta feita, a canção escolhida como fonte de inspiração foi “Nesta rua…”.
Paes procede exatamente como no exemplo anterior: faz o recorte do trecho ini-cial e reinventa a travessia por uma rua idealizada, sonhada… A rua dá lugar à mata, ao rio e ao mundo, em geral, concedendo um caráter tão utópico, que o poeta intitula o poema de “Paraíso”.
PARAÍSO
Se essa rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
não para automóvel matar gente,
mas para criança brincar.
Se essa mata fosse minha,
eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
onde é que os pássaros vão morar?
Se esse rio fosse meu,
eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte,
que os peixes moram aqui.
Se este mundo fosse meu,
eu fazia tantas mudanças
que ele seria um paraíso
de bichos, plantas e crianças.
(PÃES; 1990).
Eduardo Amos dedica um livro inteiro ao tema dessa significativa canção — uma das mais líricas e melodiosas de nosso cancioneiro tradicional.
Cada trecho da obra discorre sobre um aspecto da rua: como seriam as casas, co-mo seriam as feiras, como seriam as festas… Em cada cena explorada, o autor recorre à anáfora, criada a partir do mote que caracteriza o verso inicial da canção: “Se essa rua fosse minha…” Eis a primeira cena da rua:
SE ESSA RUA FOSSE MINHA
Se essa rua fosse minha,
não mandava ladrilhar.
Não deixava botar pedras,
não deixava asfaltar.
Deixaria o chão de terra,
ou talvez plantasse grama.
Encheria as calçadas de flores,
um vasinho em cada poste.
Margarida, amor-perfeito,
azaleia, Dália, rosa.
E na janela de cada casa um gerânio
ou, quem sabe, uma violeta.
Tudo isso eu faria,
se essa rua fosse minha.
(AMOS; 2002: 4, 5).
Ps.: Para efeito comparativo, segue o texto verbal e a partitura da canção original:
NESTA RUA
Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar,
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu amor passar.
Nesta rua, nesta rua tem um bosque,
Que se chama, que se chama solidão.
Dentro dele, dentro dele mora um anjo,
Que roubou, que roubou meu coração.
Se eu roubei, se eu roubei seu coração,
Tu roubaste, tu roubaste o meu também.
Seu eu roubei, se eu roubei seu coração,
É porque, é porque te quero bem.
NESTA RUA… (Há referências com variações no título: “Se esta rua fosse minha”; “Nesta rua tem um bosque” etc.).
Manuel Bandeira, muito embora não tenha destinado um livro, em especial, para crianças, deixou um legado significativo e afeito ao gosto dos pequenos. De modo que contamos com uma rica seleção de poemas de caráter infantil, com o título de “Berim-bau e outros Poemas” — resultado de uma iniciativa brilhante do poeta Elias José — um mimo que reúne diversos poemas sugestivos à infância, em que vários deles brincam com as cantigas de roda, a exemplo do conhecido “Rondó do Capitão”.
Em “Rondó do capitão”, Bandeira visita a cantiga “Bão balalão”, que é das mais conhecidas de nosso cancioneiro tradicional, usada para entretenimento de crianças de colo. Eis o poema:
RONDÓ DO CAPITÃO
Bão balalão,
Senhor capitão,
Tirai esse peso
Do meu coração.
Não é de tristeza,
Não é de aflição.
É só de esperança,
Senhor capitão!
A leve esperança,
A aérea esperança…
Aérea, pois não!
— Peso mais pesado
Não existe não,
Ah, livrar-me dele,
Senhor capitão!
(BANDEIRA; 1986: 51).
No poema em questão, temos um duplo apelo musical: além do texto da canção de roda tomado como mote do poema, temos uma alusão ao tema circular, através do termo “rondó” — expressão que vem de ronda, ou seja, um tema recorrente que circula, retornando sempre ao ponto inicial (no caso, o rondó se configura com a repetição de “Senhor capitão!”).
O verso de abertura do poema, “Bão balalão”, parece uma clara alusão ao badalo de um sino (tão comum, nas cantigas infantis)… A sonoridade do “ÃO”, que caracteriza o som final de vários versos, traz a ressonância natural de sons nasais com terminação decrescente, o que colabora com a lembrança sonora de um sino.
Bandeira utiliza como mote apenas os dois primeiros versos da cantiga de roda; no mais, prossegue dando novo rumo à narrativa que evidencia a esperança… Esperança que o poeta nunca perdeu, apesar da vida nem sempre fácil.
A presença da musicalidade nos versos de Bandeira faz com que seja um dos poetas que mais viram migrar seus versos para uma canção. O vínculo do poeta com a linguagem musical é visível, até mesmo, em alguns títulos de seus poemas, a exemplo de “Debussy” e “Mozart no céu”, em que deixa claro seu apreço aos compositores cita-dos; no campo do folclore, além do poema aqui destacado, nessa mesma coletânea, contamos com os títulos: “O anel de vidro”, com base na canção “Ciranda, cirandinha”; “Na rua do Sabão”, com base na cantiga “Cai, cai balão!”; e “Boca de forno”, com base na parlenda do mesmo título todos com base no repertório folclórico brasileiro.
Elias José, o poeta responsável pela montagem da seleção de “poemas infantis” de Manuel Bandeira, é autor premiado de dezenas de livros para crianças e jovens. É de-le, também, a releitura de Bão balalão, cujo título usado equivale a uma de suas varian-tes (Bão-la-la-lão).
O poema traz um admirável jogo sonoro, explorando as vogais nasalizadas — ão, en, im, om, um — e, a cada estrofe, uma vogal é colocada em evidência.
Convém destacar o fato de que a primeira estrofe reproduz, quase que na íntegra, o texto original, alterando apenas uma palavra que, de forma proposital, mantém sonori-dade muito aproximada: ginete / sorvete. Segue o poema:
BÃO-LA-LA-LÃO
Bão-la-la-lão,
senhor capitão,
espada na cinta,
sorvete na mão.
Bão-la-la-lente,
senhor tenente,
a tropa na frente
e a moça na mente.
Bão-la-la-lim,
senhor Serafim,
dinheiro no bolso,
nem liga pra mim.
Bão-la-la-lom,
Senhor garçom,
serve pra gente
bala e bombom.
Bão-la-la-lum,
senhor Viramum,
o pé na estrada
sem rumo nenhum.
(JOSÉ; 2002: 38, 39)
Elias José, assim como Manuel Bandeira, escreveu inúmeros poemas tomando como base o cancioneiro folclórico, que parece inspirar a todos os que conseguem olhar a infância com lupa especial. É do mesmo autor os poemas: “Coisas esquisitas”, com base na canção “Eu vi uma barata”; “Acalanto”, com base na canção “Boi da cara preta”; “Namorinho de portão”, com base na parlenda “Rei, soldado, capitão…”, dentre outros diálogos com o acervo folclórico.
Ps.: Para efeito comparativo, segue o texto verbal e a partitura da canção original:
BÃO-BA-LA-LÃO
Bão-ba-la-lão,
Senhor capitão,
espada na cinta,
ginete na mão.
Para finalizar este breve artigo, não poderia faltar um poema alusivo à cantiga “Ciranda, cirandinha” — uma canção emblemática que representa, de maneira expres-siva, as cirandas em geral, do nosso cancioneiro folclórico brasileiro, trazendo no pró-prio título o termo “Ciranda”, sinônimo de “Cantiga de roda”.
Falo do poema “Ciranda de Mariposas”, de Henriqueta Lisboa, a poetisa que re-cebeu, no ano de 1984, o prêmio Machado de Assis, pela obra “O Menino Poeta”, na qual se encontra o poema citado e, aqui, apresentado:
CIRANDA DAS MARIPOSAS
Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.
Ai! poeira de ouro translúcido
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.
Estrelas são mariposas
(Faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.
(LISBOA; 1984: 34).
A ponte alusiva à cantiga “Ciranda, cirandinha” já se define nos dois primeiros versos, quando o volteio das mariposas atraídas pela luz é, graciosamente, comparado à brincadeira de roda, ressaltado pela autora, ao mencionar “ciranda das mariposas”.
O poema conduz as crianças a brincar com elementos do real e do imaginário, seguindo as primorosas imagens poéticas: “mariposas na vidraça são brincos de ouro”; “bailando em torno da lâmpada”, concluindo com: “batem asas de esperança / contra as vidraças da lua”.
Essa lição de lirismo — plena de ludicidade — alimenta o imaginário infantil que traz, em sua alma, de modo muito natural, o viés da poesia. Já dizia Carlos Drummond de Andrade: “Todos nascem poetas, pena que poucos continuam a sê-los”.
Digno de nota, também, são as aliterações usadas como elemento enfático do texto, tais como: “(faz tanto frio na rua)”, em que a incidência da consoante fricativa “r” parece fazer a fala tremer de frio. Essas nuances, que misturam sensações com lirismo e ludicidade, levam os pequenos a mergulhar na poesia com especial prazer… Esse é o intuito de quem escreve poesia infantil.
Ps.: Para efeito comparativo, segue o texto verbal e a partitura da canção original:
CIRANDA, CIRANDINHA…
Ciranda, cirandinha,
vamos todos cirandar.
Vamos dar a meia-volta,
volta e meia vamos dar.
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou.
Por isso (diz o nome de alguém da roda)
entre dentro dessa roda,
diga um verso bem bonito,
diga adeus e vá embora.
3. Considerações Finais
O aproveitamento do cancioneiro folclórico, enquanto elemento desencadeador da poesia endereçada aos pequenos, é uma verdadeira mina de ouro… A concepção poé-tica dos últimos anos do século XX, abraçando o século atual, preza pela estimulação do imaginário, motivando as crianças a desconstruir discursos sedimentados com o intuito de fazê-las repensar…
Não se trata de desrespeitar a tradição, muito pelo contrário, temos, aqui, uma excelente oportunidade de conhecer melhor e divulgar nossas raízes culturais. Trata-se tão somente de desenvolver a capacidade de inovar, de reinventar, de pensar em outras possibilidades e soluções, diante de versões cristalizadas.
Um aspecto a ser destacado (e dos mais significativos) é trazer à tona as versões originais para confronto, porque, sem a oportunidade de comparar, o diálogo não é esta-belecido… e a obra de arte desafia o mundo dialogando com outras obras, com o tempo e, até mesmo, conosco!
4. Referência Bibliográfica
- ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil — Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione, 1989.
- AMOS, Eduardo. Se essa rua fosse minha. São Paulo: Moderna, 2002.
- BANDEIRA, Manuel. Berimbau e outros poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
- BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986.
- DRUMMOND, Elvira. Cantigas de Roda — sem prazo de validade, com selo de eternidade… (Ensaio). Fortaleza: LMIRANDA, 2020.
- JOSÉ, Elias. Lua no Brejo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996.
- ………………… Namorinho de Portão. São Paulo: Moderna, 2002.
- LISBOA, Henriqueta. O Menino Poeta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
- PAES, José Paulo. É isso ali. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.
- ………………………… Poemas para Brincar. São Paulo: Ática, 1990.
Por ELVIRA DRUMMOND